Sete a um

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Esbaforido, o morceguinho-correio guinchou :

– É ele, eu vi, é ele, tenho certeza.

Alertados pela guincharia do pequeno quiróptero, os amigos aguardavam impacientes, desde a chegada do bichinho no começo da noite: Aurora empoleirada no mais alto galho da Aroeira, Oto de cabeça para baixo na entrada da caverna, sem nunca perder Aurora de vista, Arnaldo, dando cabriolas de contentamento no lago escuro.

O morceguinho-correio errou nos cálculos e os amigos passaram a noite em vigília. O sol lançava seus primeiros raios quando Bernardo chegou. Aurora saudou-o, Oto pendia de sono.

– Que bons ventos o trazem meu amigo? Quanto tempo! Até achei que não voltaria mais!

– Ah minha amiga, nem te conto! Foi uma verdadeira tragédia!

Conhecendo seu gosto pelo futebol Aurora arriscou:

– Os sete a um?

– Que sete a um?

– Não conta, não conta – sussurrou Oto -, ele pode não aguentar.

Bernardo não lembrava, não sabia que tinha sido sete a um. Sim, ele assistira ao jogo, mas não todo. Só lembrava de três gols, um em seguida ao outro, da Alemanha. Depois disso apagou, como se tivesse dormido. Só voltou a perceber as coisas quando já estava há poucos quilômetros da caverna.

– É melhor contar de uma vez – sussurrou, de sua parte, Aurora para Oto -, ele vai saber de qualquer jeito.

– Prepare-se meu amigo – disse Aurora cautelosa, desta vez para Bernardo –, não foi três a zero, foi sete… a um.

– Mas nós fizemos um, fizemos um, o de honra, o mais bonito – gritou do lago Arnaldo, o bagre.

Bernardo, ouvindo aquilo, perdeu novamente os sentidos, desta vez, acompanhado de perda dos movimentos também. Caiu como se estivesse morto. Oto e Aurora esqueceram as rivalidades e correram ao lago buscar água. Molharam o rosto do eremita, abanaram-no com as asas, até que a cor voltou à pele e o pobre homem se mexeu.

– O que foi sete a um? – perguntou Bernardo

– Depois a gente fala disso – respondeu Aurora.

– Não, eu quero saber agora, quero saber de tudo.

– Conta Oto – falou Aurora, virando o rosto -, eu não vou fazer isso.

E Oto contou, com detalhes. Contou como os alemães foram para cima das fileiras do time brasileiro, como panzers, passando por cima de tudo. E enfiaram, quatro, cinco, seis, sete gols nas redes brasileiras. E só não fizeram mais porque ficaram com pena.

– Com pena! – exclamou Bernardo. – Mas somos o time brasileiro, pentacampeões do mundo, os melhores em todos os tempos. Está certo que decaímos um pouco, mas nunca para perder de goleada… de ninguém.

Oto descreveu os lances, falou de como os alemães perderam de propósito outros gols. E que, dias depois, os holandeses fizeram três no nosso time, e também se desinteressaram por fazer mais.

– E alguém foi preso? – perguntou Bernardo.

– Ninguém – respondeu Aurora.

A coruja perguntou se ele veio para ficar e ele disse que sim, que já estava mesmo saturado das coisas da cidade, com vontade de voltar para a caverna, não aguentava o trânsito, o barulho, a violência, o mau-humor das pessoas, a correria, e que quando os alemães fizeram os três primeiros gols, foi a gota d´água, o ponto de saturação, e ele perdeu a noção do tempo, das coisas, e só não perdeu a noção do espaço, pois, de alguma maneira, conseguiu se orientar até ali.

– Pois então prepare-se, pois tenho mais uma notícia ruim para lhe dar – disse a coruja.

– E tem mais? O que pode ser ruim depois dos sete a um?

– Dunga é o novo técnico da seleção – anunciou a ave.

– A TV ainda pega aquele canal Z33? – perguntou Bernardo.

O eremita referia-se a um canal misterioso que eles sintonizavam no velho aparelho de televisão presenteado pelo jovem João Paulo anos antes, e que tinha o poder de mudar a realidade, transmitindo só as coisas que os telespectadores queriam ver.

– Pega sim – respondeu Aurora.

O sol ardia no meio do céu e os quatro amigos ainda vibravam na frente da TV, no salão da caverna, gritando como loucos a cada novo gol do Brasil contra a Alemanha. Já estava oito a um para nossa seleção e agora os jogadores do nosso time, com pena do adversário, apenas trocavam passes, aguardando o apito final.

*Bernardo, o eremita, é um ex-torcedor fanático que vive isolado em uma caverna. Ele é um personagem fictício de João Batista Freire.

Para interagir com o autor: bernardo@universidadedofutebol.com.br

Leia todas as colunas anteriores de Bernardo clicando aqui.

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