Cristiano Ronaldo é uma ficção

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Acordei com o barulho das maritacas. Madrugaram. Conhecem maritacas? É um papagaio verdinho, pequeno, que voa fazendo barulho. Minha avó tinha uma que entrava no bolso do avental dela. Ainda com sono e esfregando os olhos, saí da caverna e dei de cara com Aurora, a coruja, encarapitada num resto de tronco queimado ao lado de sua toca.

– O que faz tão cedo? Perguntei

– Leio, ela respondeu – Nem dormi.

Esqueci de dizer que Aurora lê, e bastante. Não, não sei onde nem como aprendeu. Deve ter sido por aí, entre um voo e outro. Arnaldo, que é bagre, e cego, nem em braile lê. Não que lhe faltem recursos, ele é inteligente; tipos como Arnaldo, porém, terrestres, praticam verdadeiros malabarismos intelectuais. Muitos são reconhecidos e até chamados de doutores. Porém, bagres cegos moram em lagos de cavernas, e, como é de conhecimento geral, papéis e computadores não suportam água.

– O quê? Perguntei.

Ela lia Humberto Eco, imaginem, o italiano que escreveu “Em nome da rosa”, mas que também escreveu “Viagem na irrealidade cotidiana”, a leitura de momento de Aurora. Não era um romance, era um ensaio.

Aurora, mais que tudo, prende-se ao futebol, e Eco escreveu sobre o esporte no livro “Viagem na irrealidade cotidiana”. Nunca li nada que esse italiano escreveu, portanto, tive que perguntar a Aurora:

– E o que ele fala do esporte, é mau? Afinal, nem sempre os intelectuais nutrem simpatias pela competição esportiva.

– Nem mau, nem bom, respondeu Aurora – para ele o esporte é um desperdício saudável. Além de um certo limite, neutraliza suas próprias virtudes e produz o monstro individual e social. Vou ler um trechinho para você: “o atleta é um monstro, é o Homem que Ri, é a gueixa do pé apertado e atrofiado, destinada à instrumentalização total”. Sabe o Homem que Ri? Aquele da história do sujeito que tinha os dentes sempre à mostra porque teve os lábios cortados.

Nossa conversa entrou sol adentro. Humberto Eco não foi criança de brincar com bola, e não me impressionou tanto quanto impressionou Aurora. Talvez ele nunca tenha percebido que os duros machos de nossa espécie são capazes de chorar comovidos diante de um gol de sua equipe ou da amarga derrota para um adversário tradicional. No estádio, e só no estádio, há homens que choram, e riem, e se abraçam uns aos outros, esquecendo o pudor, e isso é bom, e isso é rico.

– Cristiano Ronaldo é uma ficção! Exclamou Aurora, influenciada que estava pelo texto do escritor italiano.

E é; do jeito que a coruja pensa, é sim, uma grande ficção. Quando o mundo vibra por ele, não é ele que joga. As jogadas que ele realizou no San Siro, em Milão, ou no Santiago Bernabéu, em Madrid, perderam-se nas teias da falação esportiva, depois de passar pelas telas da televisão ou da internet.

As pessoas que não vão ao estádio e conhecem o futebol somente pela televisão, pela internet, rádios, jornais e revistas, têm, do jogo, uma outra dimensão. Na televisão, por exemplo, tem-se a impressão que o campo é maior, que os jogadores têm mais espaço para jogar, que, ao pegar na bola, há tempo de sobra para realizar as jogadas. E não é nada disso. No jogo transmitido pela televisão, quem escolhe os ângulos, é o operador da câmera; vemos o jogo que a emissora quer que a gente veja. Quando ouvimos a transmissão dos jogos, os comentários e debates, imaginamos o jogo que eles imaginam. No campo, em tempo real, ao vivo, o jogo é outro.
Quando um jogador pega na bola, mal tem tempo de olhar ao redor antes que os adversários caiam-lhe em cima. Sabem, aqueles que frequentam os estádios, que é preciso muito mais habilidade para jogar o futebol real que o futebol fictício dos meios de comunicação.

– Basta que o Cristiano Ronaldo, nos primeiros anos de sua carreira, tenha feito alguns belos gols, algumas boas jogadas, que, a partir daí, haverá alimento para essa ficção pelo resto de sua vida profissional, disse a coruja

– O Cristiano entrará em campo, as pessoas o verão na tela da televisão, ouvirão dele o que disserem os jornalistas, lerão o que escreverem sobre ele e pagarão pela imagem que esse aparelho ficcional fizer dele. E aqueles que frequentarem o estádio, passarão a ver o protagonista de uma história de ficção inventada pelos meios de comunicação. Seus olhos já não serão seus olhos, porque até isso será produzido, será uma farsa, uma ficção.

Tive que concordar com Aurora. Sim, porque aquele Cristiano Ronaldo real, que tensiona e relaxa músculos no gramado, que sua, que xinga, que se aborrece e se alegra todos os finais de semana no Bernabéu, é um outro. Já nunca mais o veremos, mesmo se ele estiver na nossa frente, mesmo se ele entrar, como entrou, no estádio, num dia em que não havia jogo, apenas para que a multidão o visse ser apresentado como o novo ídolo do time. O jogador que faz gols, que corre, que cai e se machuca, nunca renderia os milhões e milhões de euros que todos pagamos por ele. Ele é apenas o jogador, o Cristiano; e esse que produz tantas fortunas é o meta-jogador, a obra impressionista de um enumerável séquito de operadores de uma bolsa inflacionária de valores futebolísticos, para quem não há pudor ou limites financeiros.

– Daqui a pouco o Cristiano entrará em campo contra o La Coruña e eu verei o jogo do jogo do jogo do jogo que será transmitido pela televisão. Mais alguns dias e eu continuarei vendo outros jogos de jogos do Cristiano Ronaldo, até que se esgote essa falação e comece tudo de novo no próximo final de semana, concluiu Aurora.

E foi nesse ponto que resolvi voltar para a caverna e dormir mais um pouco, antes que meu gosto pelo futebol se esgotasse de vez.

*Bernardo, o eremita, é um ex-torcedor fanático que vive isolado em uma caverna. Ele é um personagem fictício de João Batista Freire.

Para interagir com o autor: bernardo@universidadedofutebol.com.br  

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