Micale, Ranieri e o resultadismo

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É visível que o famigerado mundo moderno exige cada vez mais conquistas, êxitos e vitórias. Ganhar passou a ser sintoma de sobrevivência. E há diversas formas de ganhar, todas com suas particularidades que devem ser respeitadas. Mas nessa época, o que mais se tem aceitado é apenas ganhar, quase sempre sem saber o percurso construído para a vitória.

E no futebol isso fica escancarado. Há um choque entre os que querem construir um percurso para ganhar versus os que querem ganhar de qualquer forma e se viciam pela vitória mesmo sem ter nunca ganhado algo realmente. Para esses, ganhar basta para amenizar a tensão, não importa como, e se a vitória não acontecer, o mundo acaba, desaba e um terremoto com perspectiva de tsunami acontece até o próximo embate.

Nós como treinadores temos que nos acostumar com esse cenário, pois estamos no futebol para vencer, correto? Não podemos ser hipócritas ao ponto de desconsiderar a importância da vitória e do sustento anímico geral que ela proporciona. A questão fulcral é perceber que além da vitória visível a todos, existem outros níveis de vitórias quando um verdadeiro processo é construído, e o resultado final fica mais nítido, mais robusto. Mais que isso, apenas uma equipe pode ser campeã, mas várias podem atingir objetivos traçados que vão além do resultadismo momentâneo. Também se o processo for sustentado por uma lógica coletiva, nos momentos de dificuldade, a ideia tem a tendência de fortalecer.

Já virou praxe ver noticiários toda semana, e às vezes todos os dias, sobre treinadores destituídos de suas equipes sem eles mesmos saberem o motivo. E no meio desse enredo, semana passada dois treinadores saíram de suas equipes. Não sei se seria de forma injusta, mas desprezando um pouco o passado recente de êxitos expressivos; e foi de grandes êxitos, sim. No futebol existe lembrança? Micale e Ranieri levaram suas equipes a conquistas inéditas com duas formas de jogar distintas, com ideias e identidade, e olha o que aconteceu!

Menos de um ano depois ambos saíram de suas equipes. Micale com outros jogadores, outra categoria, necessitando criar uma identidade em pouco tempo. Ranieri com a mesma equipe, com alguns novos jogadores, carecendo reforçar e ajustar a identidade de jogo numa selva feroz que é a Premier League. Algo normal para o mundo do futebol e suas saídas. Mas a questão é que os dois vinham construindo processos interessantes, e como todos sabem, quando os resultados visíveis demoram um pouco, o caminho da rua é a melhor alternativa.

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Menotti, ex treinador e um sábio do futebol, numa entrevista sobre a equipe do Barcelona, disse algumas palavras interessantes para contextualizar um pouco isso:

“Quando o resultado não vem porque se perdeu a forma de jogar, se produz mais tristeza e maior desconcerto. E o único caminho possível é voltar ao início e reforçar a ideia”. 

Mas eles, como muitos treinadores, não conseguiram voltar e reforçar a ideia, por que a obviedade aconteceu. No futebol, não existe passado, memória e paciência. Todo treinador é descartável. Os diretivos, na sua grande maioria, com pouco preparo para gerir a derrota, preferem trocar os treinadores como trocam de marcas de carro, ao invés de redesenhar planos e objetivos. É claro, há fatores que são incontroláveis para um treinador no decorrer do processo, mas quase todos, na sua grande maioria, podem ser simplesmente reajustados. Mas ele, o resultado, seu dogmatismo, independentemente de como foi sua história, afeta demasiadamente as pessoas, especialmente se não tiver uma ideia comum entre todos pertencentes ao processo. E é isso que falta: comunicação, interação e ideias conjuntas.

Tal tendência, muito por conta dos fatos feitos, pré-fabricados pelos diretivos, imprensa e torcida, influenciam os treinadores pela luta diária para se manter empregados. Ganhar e ganhar e ponto final, com ideias ou sem ideias. No fim, esse temor faz poucos treinadores influentes e muitos influenciados pelo sistema.

Duvidar da vitória e da derrota, aprender em todos instantes, poucos sabem o que é isso. Nada pode substituir o lento e duro processo de trabalho. Mas quando não se sabe o que é processo, o que fazer?

O treinador de basquete do Valencia, Pedro Martínez Sánchez, na roda de imprensa após perder o título da Copa do Rei para o Real Madrid, disse algo interessante para refletirmos:

“Perdemos sendo fieis ao que queremos ser, a como treinamos e a como jogamos. Então eu prefiro se perder, perder assim, pois não adianta ganhar fazendo coisas que não servem para sermos melhores. E esse é o caminho”.

“Tudo se valoriza em função do resultado e eu entendo. Eu sei há muitos anos que quando se ganha tudo é maravilhoso e quando se perde não tanto. É assim. Porém há nível interno, de vestiário, eu creio que temos que lembrar algumas coisas. Estamos numa boa linha, temos que pensar em o que melhorar para a próxima vez estarmos um pouco melhor preparados, não muito melhor, só um pouquinho. Isso pode ser suficiente e passa pelo trabalho do dia a dia e por não entrar em pânico, por não desanimar”. 

Em uma de suas várias mensagens significativas nesse aspecto, Bilesa também numa roda de imprensa deixou um recado:

“Não permitam que o fracasso deteriore a autoestima. Quando ganha, a mensagem de admiração é tão confusa, estimula tanto o amor para você mesmo que te deforma. E quando perde, acontece o contrário, há uma tendência murchosa, sem prestígio, que te ofende, só porque perde. Em qualquer tarefa se pode ganhar ou perder, o importante está na nobreza dos recursos utilizados, isso sim é o importante; o importante é o trânsito, a dignidade com que recorre o caminho na busca do objetivo. O outro é história para vendermos uma realidade que não é a tal”

“Isso será por que Bielsa entende que ganhar nem sempre é dar a volta olímpica. Seu triunfo passa por manter vivo seu orgulho, seu procedimento, mais que sair em um pôster de campeão”, disse Marcelo Sotille em um de seus artigos sobre Bielsa.

Nada mais claro nas palavras de Oscar Cano treinador Espanhol:

“Como gostaria que alguma vez falássemos bem de quem não ganha, e que deixemos de inventar capacidades a quem obtém a vitória”.

No fim, algumas reflexões para fechar:

Micale e Ranieri foram vitoriosos, mas agora não são mais?

Eles não serão os primeiros e nem os últimos a vivenciarem isso, correto?

Seja para os resultadistas ou para os idealistas, o futebol é resultado, não é?

Essa é a realidade do futebol?

Cada um tem sua visão de futebol, não podemos mudar, mas o que avaliar no resultado realmente?

Respeito e ideais, palavras cada vez mais órfãs nesse meio, como a derrota, correto Micale e Ranieri?

Abraços e até a próxima!

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