A necessidade do mito

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Em certo momento do filme “As aventuras de Pi” (tradução infeliz e reducionista de "Life of Pi", do excelente diretor Ang Lee, que ainda está em cartaz no Brasil), após ter apresentado duas versões de uma mesma história, o protagonista que dá nome à trama pergunta ao interlocutor, um escritor canadense, se ele prefere o relato fantástico ou a história mais realista. O ouvinte escolhe a primeira opção.

Pi é um indiano criado em um zoológico. Os pais dele decidem vender o empreendimento da família e mudar para o Canadá, mas a viagem é interrompida abruptamente. O navio afunda, e o personagem-título é o único humano a sobreviver.

Durante o exílio no mar, Pi é obrigado a conviver com um tigre de bengala chamado Richard Parker. A história envolve nuances da relação entre o menino e o animal, passagem por uma ilha misteriosa e imagens sensacionais. O filme é constantemente comparado com "Avatar" pelo uso da tecnologia 3D, mas considero mais pertinentes as relações com "As invenções de Hugo Cabret" (pelo visual) e "Peixe Grande e suas histórias maravilhosas" (pelo conteúdo).

As duas versões da história devem-se à reação dos agentes da seguradora. Pi relata o que aconteceu após o naufrágio, e os funcionários dizem que não podem colocar isso no relatório. O indiano então usa o mesmo cenário e monta um roteiro parecido, mas muda os personagens e censura o fantástico.

A segunda história é mais forte, triste e crível. Ainda assim, o interlocutor de Pi escolhe a primeira versão (note que a pergunta não é "qual você acha que é verdadeira?", mas "qual você prefere?").

 

 

Mas o que o filme tem a ver com esporte? É simples: a segunda forma de contar histórias, pasteurizada e sem ferir a expectativa de quem ouve, não é suficiente para construir mitos. Os mitos são a matéria-prima básica do esporte, que não pode abrir mão do que é fantástico.

Mito, aliás, é a palavra perfeita para esse produto básico do esporte. Porque mito pode se referir a um relato fantástico, à narração de um feito ou até ao próprio ídolo. Afinal, não são esses os elementos que balizam relações emocionais como o ato de torcer?

Falar sobre o processo de construção de mitos demandaria tempo e espaço. Para um aprofundamento sobre o tema, sugiro o livro "Futebol: mitos, ídolos e heróis", de Sergio Settani Giglio. Também vale dar uma olhada em toda a obra da psicóloga Katia Rubio, uma das principais especialistas em psicologia do esporte no país.

Para nós, o ponto mais importante da discussão é o comportamento que cria ídolos. Não existe um manual para a construção de um personagem que interaja bem com os microfones e reverbere. Contudo, é possível usar algumas técnicas e notar que existe um elemento imprescindível: ele precisa transmitir autenticidade.

Com tudo isso em mente, tente ver um jogo da Copa São Paulo de futebol júnior. Quando o fizer, dê atenção especial às entrevistas antes, durante e depois das partidas. Acompanhe o que dizem atletas, técnicos, dirigentes e outros profissionais envolvidos com os times de base.

Depois, tente ver um comercial da varejista esportiva Foot Locker, dos Estados Unidos, com participação de atletas da liga profissional de basquete do país (NBA). Há bons exemplos aqui (http://tinyurl.com/ayjl84k) e aqui (http://tinyurl.com/cr7pcly).

Por último, complete o exercício e tente imaginar como seria a participação de um jogador brasileiro de futebol em um comercial desse tipo. Ou então recorra a exemplos de atletas tupiniquins em peças publicitárias. Exemplos disso pululam no maior arquivo da sociedade moderna, também conhecido como internet.

A constatação é inevitável: há exceções, mas a maioria dos atletas brasileiros – e aqui não me refiro apenas ao futebol – é totalmente despreparada para lidar com a mídia. Eles podem ser famosos e podem frequentar diferentes plataformas de comunicação, mas ainda falta muito para agirem como verdadeiros mitos.

Nas principais ligas esportivas dos Estados Unidos, é comum que os atletas sejam preparados para a construção de figuras públicas. Não é apenas o que falar, mas o como falar. Alguns deles fazem cursos complementares, como trabalho de fonoaudiologia e até o uso de profissionais que preparam atores.

O mais importante, contudo, é a transformação do atleta em personagem. Ele pode ser reconhecido pelo visual, pelo comportamento ou por frases específicas, mas é fundamental criar uma marca.

Por mais paradoxal que seja, os atletas precisam criar marcas e aprender técnicas para transmitirem autenticidade. E como eu disse lá em cima, autenticidade é fundamental para gerar empatia.

É claro que há exemplos contrários. O goleiro Marcos, que se aposentou no ano passado, é um caso de quem passou a carreira rasgando manuais de comportamento e de como falar com a mídia. Ainda assim, é um dos maiores ídolos da história recente do futebol brasileiro.

Marcos conseguiu falar diretamente com o torcedor. De forma inata, sem planejamento voltado a isso, o goleiro criou um personagem falastrão, sincero, emotivo e dedicado. Qualquer um associa esse tipo de atributo ao ex-dono da camisa 12 do Palmeiras.

Quando uma empresa investe no esporte, a meta é usar o segmento para associar uma marca a certos atributos. Atletas só são apostas viáveis quando têm um perfil diretamente associado às características que as companhias buscam.

Nenhum atleta consegue virar personagem se apenas repetir declarações padronizadas ou se não souber usar a mídia. Neymar brilha pelo que faz em campo, mas vende ainda mais pelo jeito "ousadia e alegria" de ser.

Portanto, o fantástico no esporte não é apenas uma questão de formação de idolatria. Ser fantástico é, para os atletas, uma questão de sobrevivência.
 

Para interagir com o autor: guilherme.costa@universidadedofutebol.com.br

 

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