(Des)construindo um ídolo

Entre para nossa lista e receba conteúdos exclusivos e com prioridade
Entre para nossa lista e receba conteúdos exclusivos e com prioridade

Ainda é extremamente cedo para rotular o que está acontecendo atualmente no Brasil. Sem um distanciamento histórico, qualquer análise pode ser tão precipitada quanto o famoso "Taison ou Messi".

No entanto, a enxurrada de manifestações populares gerou reações que podem ser deslindadas. Algumas delas, aliás, são exemplos perfeitos de como a comunicação ajuda a construir (ou destruir) ídolos.

É essa a ideia suscitada por um vídeo gravado por Pelé. Em 1min15, o "Rei" pediu que os brasileiros sejam condescendentes com a seleção que representa o país na Copa das Confederações. Além disso, sugeriu que o povo esqueça os protestos e se concentre na competição.

Pelé chega a dizer que o vídeo é um apelo de Edson Arantes do Nascimento, o torcedor. Mesmo assim, é impossível dissociar uma figura da outra. Declarações como essa, de pura alienação, demonstram falta de compromisso com o povo que moldou o ídolo. Não há como evitar que a imagem do atleta seja debelada.

O mesmo acontece com Ronaldo. Em meio aos protestos em várias cidades brasileiras, circulou em redes sociais um vídeo de 2011 em que o "Fenômeno" cobrou autoridades do país sobre a preparação para receber o Mundial de 2014. Preocupado com os atrasos em obras de estádios, ele disse que "Copa do Mundo não se faz com hospitais" e pediu maior preocupação com os palcos dos jogos.

A distância entre um atleta brilhante em um ídolo tem uma série de degraus: carisma e identificação popular, por exemplo. Quando fazem declarações assim, Pelé e Ronaldo jogam contra a imagem que construíram em campo.

A diferença é que Ronaldo demonstrou preocupação com isso. Quando percebeu a repercussão em torno da declaração, o pentacampeão mundial pediu desculpas, disse que o conteúdo foi "tirado de contexto", culpou "a edição" e usou outros subterfúgios para tentar amenizar um posicionamento extremamente infeliz.

Por tudo que fez como atleta, Pelé expressa excelência. Ronaldo simboliza superação, fé, esforço e outros atributos positivos. Tudo isso tem valor enorme para a publicidade, mas depende de aceitação popular. A preocupação do "Fenômeno" tem muito a ver com o lado comercial.

Ronaldo não demonstrou igual consideração para explicar as funções que ele acumula. O "Fenômeno" é um dos fundadores da 9ine, agência de marketing esportivo que agencia carreiras de atletas. Há clientes da empresa disputando a Copa das Confederações, torneio em que o ex-jogador trabalha no membro do comitê organizador e comentarista da TV Globo.

Na prática, Ronaldo é responsável por organizar a competição e por gerenciar carreiras de atletas que estão em campo. E depois precisa ter isenção para avaliar na principal emissora do país o andamento do torneio e o desempenho de seus clientes.

Ele pode até argumentar que tem reputação ilibada e autonomia para desempenhar todas as funções sem cair em contradição moral. Contudo, vale para Ronaldo a história da “mulher de Cesar”: não basta ser honesto…

Ao se aliar ao poder, Ronaldo empresta credibilidade a muita coisa que ele não pode controlar. E isso é um risco enorme para quem, depois de ter deixado os campos, tem na imagem a principal fonte de negócios.

Outro problema contido nesse tipo de comportamento é que Ronaldo se distancia da figura de homem humilde, que triunfou a despeito de não ter origem nobre. Ao se aproximar do poder, o “Fenômeno” compromete muito do que o conduziu até lá.

Nesse caso, porém, Ronaldo é apenas um exemplo. Não são poucos os atletas que aproveitaram a fama consolidada no esporte e emprestaram esse renome a diferentes instâncias de poder.

Para quem trabalha com comunicação, esse tipo de transição representa um desafio enorme. É fundamental criar um discurso condizente com a nova etapa da vida do atleta, mas que não abra mão de atributos que o moldaram.

As respostas de Ronaldo à disseminação da declaração dele são parte disso. Mais do que apresentar alguma justificativa plausível, o importante era não permitir que o rótulo de opositor ao movimento pespegasse no "Fenômeno". Para isso, ele precisou se posicionar.

As evasivas do ex-jogador também são parte de uma estratégia para evitar rusgas com qualquer lado. Quanto menos ele se posicionar de forma peremptória, menor o risco de aumentar seu nível de rejeição.

Por tudo isso, chamou atenção de forma muito positiva o posicionamento dos jogadores da seleção brasileira de futebol. Incitados a questionar os protestos e as manifestações populares, todos corroboraram o clamor público por uma série de mudanças no país.

Um dos mais veementes foi o atacante Neymar. Ele usou a rede social Instragram para publicar uma foto e um texto sobre a ida do povo às ruas. "Poderia parecer demagogia minha – mas não é – levantar a bandeira das manifestações que estão ocorrendo em todo o Brasil", diz um trecho da declaração do camisa 10.

Neymar foi sucinto, direto e enfático. Ainda que estivesse concentrado na Copa das Confederações, não ignorou um momento importantíssimo para a história do país.

Em campo, Neymar ainda fez pouco para ser comparado a ídolos como Pelé e Ronaldo. Nas recentes manifestações, porém, ele mostrou que já pode dar aulas de comunicação para ambos…

Para interagir com o autor: guilherme.costa@universidadedofutebol.com.br

Compartilhe

Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp
Share on email
Share on pinterest

Deixe o seu comentário

Deixe uma resposta

Mais conteúdo valioso