Do silêncio da bola às urnas em cólera

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Sócrates, entre dois argentinos: que jogador diria hoje que se transferiu de clube para ler Gramsci no idioma original? (Divulgação: Trivela)

 
Ainda era outro dia, quando uma rara espécie da imprensa nacional lançou um debate que poderia, em condições normais, ser até tido como brincadeira, mas era sério. Disse ele, claramente, que política e futebol não se misturam. No esporte, manifestações políticas seriam mera perfumaria, distração para corpos cuja preocupação única deveria ser a performance. Aqueles que ultrapassam a fronteira seriam meros ‘causadores de problemas’. Deveriam, portanto, ser escanteados.
Se a memória não falha, houve muitas críticas ao nosso colega – dentro e fora do esporte. Me parece que agora, às vésperas do mais tenso processo eleitoral das últimas décadas, retomar este debate é quase uma obrigação, sob efeito da sua mais profunda importância. Não pretendo aqui me alongar sobre os motivos que fazem do futebol político – político é tudo o que se passa na polis-, mas gostaria, particularmente, de refletir sobre algumas das ideias que se escondem neste discurso. Vejamos.
A nós, profissionais do esporte, sempre foram imputados os mais diversos predicados – vários deles pejorativos até a raiz. Trabalhar com esporte significa aceitar, a contragosto, uma espécie de marca, uma tatuagem irreparável, geralmente atribuída de fora para dentro. Que marca é essa? É a marca de uma suposta ignorância, de uma suposta inferioridade dada no profissional do esporte na hierarquia das disciplinas. Marca essa que parece herdeira da separação (em nada cartesiana, diga-se) entre mente e corpo. Aos olhos deles, o profissional do esporte seria, simplesmente, um mero refém das atividades do corpo, da educação do físico, de modo que a elas deveríamos nos resignar. Enquanto isso, nossos nobres colegas, das mais diversas áreas, teriam sido presenteados (por uma força divina?) com o talento para as atividades da mente, e para a nobreza estética e social dela derivadas, o que lhes colocaria em uma espécie de panteão. Ou seja, temos aqui um discurso determinista: os profissionais do esporte fomos determinados, marcados (como um gado) a trabalhar com o corpo, enquanto aos outros, pretensiosamente, foi dada a primazia da razão. Nós não precisaríamos pensar: eles pensariam por nós. Basta que aceitemos as decisões de um grupo de notáveis– como alguém propôs outro dia.
Nós sabemos muito bem sobre os elevados perigos do empréstimo do nosso pensamento. Mas, em linhas gerais, todo este panorama nos imputa uma consequência imediata: o silêncio. Em todas as suas vertentes. O problema é que ouvir o silêncio requer absoluta atenção. Repare bem como o silêncio, à sua forma, desliza pelas mais diversas camadas do esporte. No futebol, não seria diferente: árbitros não dão entrevistas. Não estão autorizados a falar. Para além dos apitos inicial e final, é como se simplesmente não existissem. Treinadores e treinadoras, por sua vez, dão inúmeras entrevistas (até demais), mas sabem perfeitamente o que não deve e, especialmente, o que deve ser silenciado. Há coisas perigosas demais a se dizer. Mesmo nossos colegas jornalistas, para quem a liberdade é tida como tão nobre, sabem muito bem o que não pode ser dito. Quando se diz, o silêncio é imposto. Ou seja, além de não nos ser seriamente dado, desde o primeiro instante, o direito ao debate, ainda estamos sob efeito constante da censura alheia. Por isso, silenciamos. Repare bem o ninho em que estamos colocados.
Assim, não me admira que estejamos, como dizia Bernardo de Claraval, sob uma luta de duas espadas: uma do silêncio, outra do desdém. O profissional do esporte, no seu mais legítimo direito ao debate, ou parece não ser levado a sério, ou sequer se manifesta, como se já estivéssemos sob efeito da resignação de que falamos acima, como se estivéssemos profundamente anestesiados. Não me admira, portanto, que soe uma obscenidade quando recorremos à nossa veia política. Ainda que vários dos nossos colegas não demonstrem qualquer interesse neste debate (o que é gravíssimo, pois é assim que se constitui a exploração), há vários de nós que se dedicam, como deve ser, a real compreensão da situação convulsionante que aflige o país e que nos leva, a cada dia, a dançar uma valsa à beira do abismo. Nestes casos, repare que a censura não ocorre apenas pela posição política, mas porque o debate parte do esporte (mesmo fenômeno que se sucede, aliás, com os artistas, cada vez mais censurados em razão dos delírios dirigidos à Lei Rouanet). Imagine você o que seria de Laia Palau – capitã e maior referência da seleção espanhola de basquete – se fosse ela brasileira e revelasse, como fez na última semana ao El País, seu ‘perfil comunista’. Qual seria o nível das reações? Quantos de nós, supostos baluartes do bem, não seríamos absolutamente violentos por uma pura discordância ideológica?
Silenciado pelos outros e por nós mesmos, não me admira que o esporte (e o futebol) tenha acumulado tamanha repressão, que se manifesta na nossa vivência diária, nos nossos treinos, no nosso modelo de jogo, ou em um período tão sensível, como é o eleitoral. Não me admira que aceitemos, por exemplo, soluções simplórias para problemas de tamanha gravidade como os que se criam aqui. Da mesma forma como não resolvemos as contradições das nossas equipes a partir de frases feitas – não por acaso, temos sido tão aliados dos paradigmas sistêmicos/complexos e etc -, por que os mesmos devaneios, que não servem para o futebol servem, serviriam para solucionar os conflitos um país tão elaborado, tão profundamente desigual como o Brasil?
Neste exato instante, é preciso traçar uma linha e dizer que, daqui em diante, não mais. Não mais emprestamos nosso pensamento, pois não estamos à venda. Não nos silenciamos, porque não somos instrumentos da dominação alheia. Não nos damos, em hipótese alguma, o direito à intolerância, ao engano, ao flerte com o fascismo, à negação paranoica dos fatos, às mais absurdas fake news, pois em nada disso reside a natureza solidária do esporte e as soluções que realmente desejamos como sociedade, mas só podem ser um retrato flagrado por quem se vale das agruras de um povo tão sofrido para atender aos interesses alheios. Sob uma feição tão bela, surge uma grande miragem, um engano que desloca nosso legítimo protesto não para uma voz de real mudança, mas para um simples patrocínio da selvageria e da barbárie, que nos explora sob os panos e, não bastasse isso, que ainda nos faz comprar, cegamente, este discurso.
E, ao fim, voltamos ao lugar de onde partimos. Em silêncio.
Até quando?

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