Entre a verdade e o mito

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Flávio Renato de Queiroz Segundo tem 20 anos e cursa o segundo ano de ciências contábeis na Universidade de São Paulo. No último domingo, ele resolveu pregar uma peça em jornalistas e foi à Uninove. Escalou um portão, gritou e lamentou ter perdido o horário para entrar no Enem (Exame nacional do ensino médio).

“Eu disse que queria fazer ciências econômicas na Universidade Federal de São Carlos. Só que nem existe esse curso”, declarou o estudante ao jornal “Folha de S.Paulo”. “A imprensa é muito ingênua”, completou.

O curso citado por Queiroz Segundo não existe em São Carlos, mas no campus da UFSCar em Sorocaba. E o garoto, por vontade de aparecer ou apenas por querer ilustrar a tal ingenuidade da imprensa, acabou dando uma série de lições involuntárias sobre comunicação.

A primeira e mais importante reflexão que o caso suscita: uma versão, por mais que seja plausível, não é necessariamente a verdade. Dar a qualquer história o peso de ser real é antes de tudo um ato de presunção.

É com isso que determinados profissionais flertam em vários momentos. Advogados e jornalistas, por exemplo, ouvem histórias diferentes, muitas vezes dicotômicas, e têm de lidar com um axioma: eles não podem ter certeza de qual é a versão verdadeira.

Nas últimas semanas, jornalistas que trabalham com esporte anunciaram a saída do técnico Tite, que atualmente trabalha no Corinthians, e a demissão de Vanderlei Luxemburgo, que está no Fluminense. Nenhuma das histórias se confirmou.

Aí entra uma segunda ideia referente ao episódio do garoto fingidor: era realmente importante entrevistá-lo? Um adolescente que chega atrasado e perde uma prova decisiva para o futuro dele é relevante de alguma forma? Por quê?

Ao contrário de outros segmentos, o esporte tem muitas fontes de informação. Se você quiser saber o que acontece em um clube ou federação, por exemplo, há sempre um enorme número de caminhos possíveis.

Em alguns casos, profissionais do departamento de comunicação tentam blindar as instituições ou os clientes e proteger informações. Aí, sempre é possível conversar com quem rodeia essas figuras.

Em outras palavras: foram raras as manifestações de Neymar sobre a transferência quando o jogador discutia a saída do Santos, no meio deste ano. Ainda assim, diferentes veículos encontraram informações sobre acertos do atacante com o Barcelona e até versões diferentes sobre o futuro do atleta.

As informações de acerto com o Barcelona, contrato assinado com o Real Madrid, valores assombrosos envolvidos no negócio e detalhes similares não partiram de Neymar. Elas saíram de pessoas que gravitam em torno do jogador, que podem ser dos clubes, do estafe, da família ou do convívio dele.

Da mesma forma, Tite e Vanderlei Luxemburgo não falaram sobre saídas dos clubes. Não fizeram nenhum anúncio e tampouco decidiram que deixariam os cargos – o corintiano chegou a pedir demissão depois de um revés para a Portuguesa, mas foi demovido.

No esporte, é possível encontrar gente para falar sobre praticamente todos os assuntos. É uma seara muito presente no cotidiano das pessoas, com incidência no dia a dia e muitas possibilidades de abordagens simples. A questão é: essas opiniões valem a pena?

Um profissional que trabalha com comunicação precisa ponderar tudo isso. É fundamental entender que haverá contradições e que muitas delas podem partir de pessoas que não têm qualquer relevância.

Essa discussão sempre me faz lembrar o filme “12 homens e uma sentença”. A obra relata a história de um réu acusado de ter matado o pai. No júri, 11 pessoas querem a condenação imediata e estão convencidas de que os argumentos são irrefutáveis. O outro mostra, de forma didática, que a verdade pode não ser assim.

O jurado dissonante não desmente a versão da maioria. Ele apenas mostra que há outras interpretações possíveis para fatos que são dados como certos por quem não os vivenciou.

A certeza de qual versão é verdadeira é algo praticamente impossível na vida de um profissional de comunicação. Um jornalista não pode asseverar isso sem ter dúvidas, por melhor que seja a apuração, a não ser que tenha presenciado a cena. Ainda assim, corre riscos de fazer interpretações erradas.

Ora, não é isso que fazem os comentaristas que tentam julgar intenção de jogadores? É impossível ter certeza, ao ver um jogo, se um atleta realmente quis colocar a mão na bola ou agredir um adversário. Por mais que as imagens esclareçam, a verdadeira intenção é certeza apenas para quem cometeu o ato.

A comunicação não trabalha com fatos, mas com versões sobre fatos. “Na dúvida entre a verdade e o mito, publica-se o mito”, disse alguém.

O esporte vive de mitos. Em todos os âmbitos, a comunicação precisa ter isso sempre em mente. Os ângulos das câmeras de TV na NBA são padronizados a fim de dar aos jogadores um ar de superioridade – as imagens são sempre de baixo para cima, valorizando o tamanho dos atletas.

As transmissões de um jogo, as entrevistas e até o comportamento dos atletas fazem parte de um plano de comunicação – ou deveriam fazer, pelo menos. Tudo comunica, afinal. Mesmo que a comunicação seja apenas uma versão dos fatos.

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