Espírito olímpico

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De onde eu lia dava para ouvir os gritinhos de Arnaldo, o bagre cego. Arnaldo e Oto, o morcego, viviam o entusiasmo da abertura dos Jogos Olímpicos em Pequim. Como eu não estava com humor para festas, procurei me concentrar no livro. Mas os ruídos de Arnaldo por cada coreografia não deixavam. Oto apenas suspirava: “Pouco me interessam os Jogos Olímpicos; quando muito, darei uma olhada no futebol”.
 
Aliás, quem idealizou as Olimpíadas foi um cidadão francês, o senhor Pierre de Freddy, mais conhecido como Barão de Coubertin, legítimo representante do machismo da época. Quando as mulheres entraram pela primeira vez nos jogos, em 1900, muitos dos homens do Comitê Olímpico ficaram indignados, principalmente o barão. Ele considerava a participação feminina uma traição ao ideal olímpico e acabou renunciando ao seu cargo no comitê em 1925, vencido por elas. De qualquer maneira, é preciso sempre lembrar que, na maioria dos casos, as mulheres praticam esportes criados para os homens, daí a nítida desvantagem que levam nos resultados. Elas deveriam criar seus próprios esportes.
 
O futebol apareceu pela primeira vez nos Jogos em 1900. Não constava do programa oficial, só que as coisas não eram tão organizadas assim e ele foi praticado à revelia da organização. O Brasil só se inscreveu nessa modalidade em 1952 e se deu mal. Caiu fora já nas quartas-de-final. De lá para cá fez pouquíssimo; nada que valesse a pena 90 minutos de torcida.
 
O futebol é um jogo, e todo jogo é egoísta. O jogador joga mais para si do que para os outros; no centro está o interesse do jogador de se beneficiar. Ele pensa menos no clube, na platéia, no país, do que no patrocinador. Porém, em segundo lugar vem aquele que o contrata, que o paga. Na época do amadorismo, em segundo lugar vinha o clube ou o país. Os tempos mudaram e o futebol virou uma mistura de jogo e trabalho. No que toca ao trabalho, o jogador tem patrão. Os jogadores profissionais de hoje, principalmente os mais famosos, são pagos pelos clubes e pelas grandes corporações: Nike, Reebok, Mizuno, Umbro, Adidas, etc. Se há alguma fidelidade da parte deles, é às corporações. Portanto, não me venham com essa história de dizer que fulano ou cicrano querem ir às Olimpíadas porque amam o Brasil. Que o amor que têm pelo Brasil transparece nos jogos da seleção brasileira. Que dizer da última Copa na Alemanha? Durante os jogos, quem ama, acima de tudo, o país, o clube, ou a cidade são os torcedores. Isso não quer dizer que os jogadores não amam muitas coisas além dos interesses corporativos: amam seus países, seus clubes, seus amigos. Na hora do jogo, entretanto, o interesse pessoal pesa mais, pelo menos no esporte profissional.
 
Era nisso que eu pensava quando bateram asas na porta da caverna. Saí para ver quem era e me deparei com Aurora.
 
“Não está vendo a abertura das Olimpíadas?”, perguntou a coruja.
 
“Não, não me interessa”, respondi.
 
“E a que você vai assistir?”, tornou Aurora a perguntar.
 
“O futebol”, eu disse.
 
“E o que você acha que a seleção brasileira vai conseguir?”, questionou a coruja com certa descrença em seu tom de voz.
 
“Talvez se saiam bem. São jovens, afinal, e os jovens são ardorosos e precisam de projeção. Nada melhor que os Jogos Olímpicos para lhes dar projeção”, concluí, não sem uma ponta de desânimo.
 
“Pois olha”, prosseguiu Aurora: “de minha parte já não acredito mais nisso. Prefiro menos hipocrisia; que os jogadores defendam aquilo que mais lhes interessa. Os jogos seriam Adidas contra a Nike, a Umbro contra a Fila, a Asics contra a Lotto, a Puma contra a Converse, e assim por diante. É por isso que durante as Olimpíadas assistirei ao canal Z33. Chega de hipocrisia”.
 
“Concordo com você, Aurora”, falei. “Também prefiro assim”.
 
Dias depois, enquanto Oto e Arnaldo soltavam seus “ais” e “uis”, o primeiro de indignação, o segundo de entusiasmo, enveredamos, eu e Aurora, pelo interior de sua toca até a sala daquela estranha TV. Sintonizamos no Z33. Nas escalações de Nike e Adidas, só nomes importantes. Foi surpreendente! Não tiramos os olhos do vídeo: um jogão! Nunca vi jogadores suarem tanto a camisa. Os prêmios eram dados em dinheiro na beira do campo, a cada gol, a cada jogada vistosa. Só não havia torcida; o povo, que ama os jogadores, que ama o país, que ama o clube não ama a Adidas. Quando muito, calça seus tênis.
 
Mas não importa, saímos da toca satisfeitos. Não havia hipocrisia, não havia Fifa, não havia COI, os jogadores não precisavam dar entrevistas e mentir dizendo que fariam de tudo pelo Brasil, ou pela Inglaterra, ou pela Alemanha. O que os movia, sinal dos tempos, era o dinheiro. Jamais recusariam uma boa oferta, mesmo que o dinheiro sobrasse. Portanto, esse era o mote do jogo. Que o assumissem! Bem mais ético do que fazer de conta que jogavam por outras coisas. Ah, e mais um detalhe: antes de começar o jogo, enquanto as bandeiras das empresas eram hasteadas, uma orquestra tocava os hinos das corporações em campo, e todos os jogadores sabiam cantá-los. Só a platéia, sem patrões, calava-se.
 

Quando voltei para minha caverna ainda pude ouvir o entusiasmo de Arnaldo: mais uma medalha de ouro para a China.

Para interagir com o autor: bernardo@universidadedofutebol.com.br

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* Bernardo, o eremita, é um ex-torcedor fanático que vive isolado em uma caverna. Ele é um personagem fictício de João Batista Freire..

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