Futebol brasileiro: a autonomia, a velocidade, a mitigação e o Paul Breitner

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Mitigar, segundo o dicionário Michaelis de língua portuguesa, significa “tornar brando, amansar; suavizar; atenuar”. Segundo especialistas em linguística, “discurso mitigado” é um discurso que se expressa como tentativa de modificar, abrandando (atenuando, suavizando, amansando, etc.) o sentido daquilo que está sendo dito.

Discursos mitigados são comuns quando “estamos sendo educados com alguém, quando nos sentimos envergonhados ou constrangidos, ou quando procuramos ser respeitosos com a autoridade” (Malcolm Gladwell, no livro Fora de Série).

Nem nos damos conta, mas o fato é que o recurso da mitigação está muito presente nos diálogos no nosso dia a dia.

Essa presença, porém, é mais por uma questão cultural que envolve o quanto cada um de nós se sente “pequeno” perante certos terceiros, ou quanto nos sentimos distantes do topo em uma escala de poder (seja lá qual for o topo ou tipo de poder), do que especialmente e simplesmente por educação.

A submissão rígida e absoluta à hierarquia e às regras faz com que em um número considerável de situações os problemas deixem de ser resolvidos, que novos surjam e, mais ainda, que a capacidade criativa de indivíduos seja sufocada.

Quanto mais submissão, mais mitigação.

Claro que não estou eu aqui tentando criar ou causar uma rebelião contra regras e/ou hierarquias. O que quero é chamar atenção para o fato de que submissão é totalmente diferente de respeito. E por mais óbvio que pareça, de certa forma, muitos de nós se coloca dentro de uma em nome da outra.

Respeitar regras e hierarquia, por exemplo, não impede ninguém de se pronunciar de maneira direta e assertiva, de divergir de algo ou expor sua opinião – muito menos de avaliar uma situação como extrema ou como exceção e, excepcionalmente, agir fora dos padrões e dos procedimentos para resolver o problema emergente (sem ferir socialmente a nenhuma real boa conduta).

Apesar de não parecer, isso tudo tem uma relação muito estreita com o futebol.

E ainda que sejam muitos os exemplos que possam ser dados, há um que talvez mereça mais destaque nesse momento – porque gerou reflexões e polêmicas: o discurso firme e direto de Paul Breitner (ex-jogador da seleção da Alemanha, atualmente comentarista esportivo e funcionário do Bayern de Munique) a respeito da baixa velocidade de jogo, do futebol jogado no Brasil.

Mesmo que alguns de nós possamos discordar de Breitner, parcialmente ou totalmente, é necessário que entendamos que, com ou sem razão, o fato é que na cultura alemã, o nível geral de mitigação nos discursos é muito baixo (segundo trabalhos e autores na área da Psicologia – G. Hofstede, M. Frese, G. Danne, C. Friedrich, por exemplo).

Isso quer dizer que a tendência é que os diálogos entre alemães sejam tipicamente mais diretos no momento de expressar opiniões.

Vamos, então, dar atenção aos comentários de Breitner sem qualquer tipo resistência que prejudique a interpretação de seu discurso.

Em geral (mas com exceções!) o futebol no Brasil tem mostrado maior lentidão com relação ao ritmo de jogo – se o compararmos especialmente ao espanhol e ao alemão.

Dados de pesquisas realizados por esse que vos escreve confirmam que, por exemplo, o tempo médio para uma ação de transmissão da posse da bola no futebol brasileiro é maior do que o das equipes dos campeonatos alemão, espanhol, holandês e o inglês.

Um tempo médio maior exige menos mobilidade dos jogadores para ocupar o terreno de jogo e para proporcionar apoios – o que o leva (o jogo) para uma dinâmica menos intensa, e dá mais tempo para os jogadores perceberem as circunstâncias-problema emergentes, avaliarem, decidirem e agirem sobre elas.

E ainda que isso tudo possa ser reflexo de um clima tropical, onde o calor desgasta mais aos jogadores, e de gramados que muitas vezes são ruins, é fato que tem relação também com a maneira com que preparamos nossos jogadores.

Para tornarmos os jogadores mais rápidos no sentido amplo e complexo do significado de “rápido” em um jogo de futebol, antes de mais nada precisamos torná-los autônomos para jogar.

Torná-los autônomos significa propiciar a eles a possibilidade de, a partir de regras e referências de ação (individuais e coletivas), uma leitura de jogo que permita que jogadores e equipes ajam de maneira criativa.

Treinos que não levem à autonomia conduzirão jogadores a agir de maneira “mitigada”, subjugada a uma sequência implícita de procedimentos formais repassados automaticamente antes de cada gesto, ação ou tarefa.

Esses procedimentos minam a criatividade, não pela sua existência – pois, em geral, a construção de procedimentos acontece para facilitar, otimizar e agilizar a resposta a problemas conhecidos – mas sim pela “submissão” das ações e gestos a um conjunto engessado e rígido de respostas e possibilidades.

A autonomia para jogar é importante na medida em que as circunstâncias-problema que surgem em um jogo são imprevisíveis, e ainda que se parta de uma “plataforma de possibilidades” conhecida na preparação de jogadores, é necessário construir em cada um deles (nos jogadores) a habilidade de criar sobre ela permanentemente.

Preparar jogadores para a autonomia de jogo significa prepará-los para, a partir dos procedimentos e referências organizacionais (do jogo e da equipe) agir, também, excepcionalmente em desacordo com eles – claro, se isso resultar na resolução das circunstâncias-problema emergentes.

Não preparar jogadores para a autonomia vai garantir ao jogo um sem número de ações mitigadas – submissas individualmente e coletivamente a procedimentos ambientais e neuromotores rígidos (gerados pelo treino!) e possivelmente desconectados da realidade imprevisível do jogo.

E o resultado disso?

Fácil: jogos lentos, dificuldades técnicas e um distanciamento do que na essência era o futebol brasileiro – criativo, imaginativo, envolvente e de muitos acertos.

É isso…
 

Para interagir com o autor: rodrigo@universidadedofutebol.com.br
 

 

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