Leitura labial

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O jogo valia pouco para o Cruzeiro, que já tinha assegurado com antecedência o título do Campeonato Brasileiro de 2013. Valia muito para o Vasco, cada vez mais ameaçado de rebaixamento.
 
Entre perspectivas dicotômicas, uma cena chamou atenção: no segundo tempo, durante uma conversa entre o meia cruzeirense Júlio Baptista e o zagueiro vascaíno Cris, as câmeras de TV flagraram o representante da equipe mineira dizer: “Faz logo o terceiro gol!”.
 
O que existe de história é isso. É óbvio que uma cena assim dá margem a uma série de interpretações, mas são apenas ilações. A imagem da TV é insuficiente para discernir o contexto ou construir absoluta certeza sobre o que aconteceu ali.
 
Ainda assim, a cena entre Baptista e Cris foi dissecada. Houve discussões sobre o Cruzeiro ter “entregado” o jogo para o Vasco, sobretudo porque o goleiro Fábio e o zagueiro Dedé, torcedores da equipe carioca, terem pedido para não atuar. Pesou também a evidente – e natural, aliás – diferença de motivação entre as equipes.
 
No domingo, outra cena do Campeonato Brasileiro chamou atenção. Durante o segundo tempo do jogo entre Flamengo e Corinthians, o zagueiro flamenguista Wallace e o atacante corintiano Emerson conversaram. Enquanto falava, o defensor cobriu a boca com as mãos para impedir que as câmeras identificassem o teor da conversa.
 
A estratégia de Wallace não é nova, mas é curioso que ela tenha acontecido imediatamente após a polêmica do jogo entre Cruzeiro e Vasco. Trata-se a consequência (a polêmica gerada pelas gravações), mas preserva-se a causa (a conversa entre os atletas no meio do campo).
 
Nesse caso, porém, o problema não é um desvio de conduta de cruzeirenses ou vascaínos. O que motivou toda a celeuma do fim de semana foi uma interpretação fundamentada em argumentos débeis, desprovida de uma noção exata do contexto.
 
O desafio de qualquer profissional que trabalha com comunicação é transmitir mensagens. A conversa entre Júlio Baptista e Cris é um exemplo de que até conteúdos aparentemente simples, se forem deslocados do contexto, podem gerar reações totalmente diferentes.
 
Esse caso escancara um dos problemas do modelo de venda de direitos de mídia no esporte brasileiro. Enquanto a geração do conteúdo for responsabilidade dos parceiros de transmissão, a preocupação maior será sempre a informação.
 
Em grandes campeonatos – a Copa do Mundo e a Liga dos Campeões da Uefa, por exemplo – as imagens de torcedores que entram no campo não são mostradas. As entidades que organizam esses certames entendem que a veiculação disso apenas daria notoriedade aos invasores, que buscam exatamente isso quando ultrapassam o limite das arquibancadas.
 
O Campeonato Brasileiro não tem margem para impor essa determinação. Quem gera o conteúdo e distribui para as emissoras é a própria Globo, e a Globo, como empresa de mídia, tem a informação como preocupação anterior à competição.
 
A polêmica criada sobre o diálogo entre Júlio Baptista e Cris é pobre, rasa e clubista. É um debate baseado em uma imagem deslocada, sem contexto, sem informações claras. Ainda assim, essa discussão absurda roubou exposição que poderia ter sido dada ao que aconteceu em campo no Brasileirão. Para isso, bastava a CBF controlar as imagens geradas da competição.
 
Ter nas mãos o que é veiculado é um caminho extremamente pertinente para os donos de eventos esportivos. Esse controle também possibilita, por exemplo, uma padronização na exposição de parceiros e patrocinadores. As TVs podem cortar marcas que estão em backdrops de entrevistas porque são elas que gravam e transmitem. Não há uma padronização do vídeo.
 
Outro caminho possível nesse caso é um acordo com a mídia. Acordo, contudo, pressupõe que as duas partes abram mão de algo. O cenário ideal para o dono do evento é tomar frente na discussão. Há vários caminhos para isso.
 
Parceiros de mídia devem ter privilégios na cobertura. Eles pagam por isso. Deixar nas mãos deles a geração do conteúdo, porém, é ser suscetível a coisas que podem denegrir a imagem de um evento. O dono da competição precisa ter isso sempre em mente.
 
A geração do conteúdo também tem uma clara influência na questão técnica. Ver jogos pelo canal Premiere FC é suficiente para saber que não existe uma padronização de qualidade nas exibições do Campeonato Brasileiro. O que é mostrado muitas vezes não condiz com o status da principal competição do esporte mais popular do país.
 
A transmissão é uma operação cara. Se o dono do evento não assumir isso ou não estipular parâmetros em contrato, é natural que o parceiro adote medidas para reduzir as despesas. Qualquer parceiro. Em qualquer evento.
 
A Globo tem uma visão de negócios. O futebol é transmitido às 22h das quartas-feiras porque dá menos audiência do que a novela, que ocupa a faixa anterior na programação, e perde para atrações do mesmo horário em outros dias.
 
A visão de negócios também é uma das justificativas para o atual calendário do futebol brasileiro. A Globo gosta do formato vigente porque ele permite que a emissora tenha um número maior de jogos do Corinthians, time que registra índices mais altos de audiência na Grande São Paulo, região de referência para o mercado publicitário.
 
Um dos itens mais recorrentes nas propostas do Bom Senso F.C., grupo formado por jogadores de futebol para discutir o futuro da modalidade, é o desmembramento de rodadas. Os atletas defendem que o número de jogos no ano seja reduzido, mas que isso não altere o volume de partidas na TV.
 
Para aceitar isso, a Globo teria de abrir mão de exibir um contingente tão grande de jogos do Corinthians. Teria de mostrar jogos de times cujos resultados nos últimos anos estiveram distantes da audiência que a emissora almeja com o futebol.
 
Como negociante, a Globo está no papel dela ao brigar pelo que é melhor para a empresa. O melhor cenário para ela é encaixar o futebol nos locais ideais da grade e limitar as exibições ao que dá mais audiência.
 
Aí é que precisa entrar o detentor dos direitos. Essa é mais uma das consequências nefastas do atual modelo de negociação de mídi
a no Brasil, que é totalmente individual. A margem dos clubes para conversar com a TV é muito diferente do que eles teriam se pensassem de forma coletiva.
 
Recentemente, em evento realizado em São Paulo, Luis Paulo Rosenberg, vice-presidente licenciado do Corinthians, deu uma demonstração de como isso funciona. Questionado sobre a divisão desigual das receitas de mídia no futebol brasileiro, o dirigente contestou essa ideia.
 
“Se vocês considerarem a quantidade de jogos do Corinthians que a TV exibe, o atual cenário é até uma concessão que nós fazemos. O clube podia faturar muito mais se nós exigíssemos um valor proporcional ao que ocupamos na grade anual”, teorizou.
 
A lógica de Rosenberg é clubista a ponto de ser distorcida. O problema não é apenas a divisão do dinheiro, mas exatamente o quanto o Corinthians domina a grade. Isso só é bom para o clube e para a TV, mas tem efeito prejudicial para o futebol como um todo.
 
A leitura labial, a geração das imagens e a distribuição das grades de TV são assuntos que necessariamente devem pautar discussões dos donos de um evento. Em outros países, isso é padronizado em reuniões das ligas que organizam as competições.
 
Mas quem é o dono do Campeonato Brasileiro, mesmo?

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