Mordaça

Entre para nossa lista e receba conteúdos exclusivos e com prioridade
Entre para nossa lista e receba conteúdos exclusivos e com prioridade

Apaixonado por futebol e por hipérboles, o escritor Nelson Rodrigues disse certa vez que o clássico entre Flamengo e Fluminense “começou 40 minutos antes do nada”. No último domingo (05), as duas equipes fizeram um confronto que corroborou essa ideia. Era apenas um duelo válido pela fase de classificação de um combalido Estadual do Rio de Janeiro, mas um gigantesco número de elementos fez com que as discussões em torno da partida extrapolassem consideravelmente os 90 minutos. E é claro, tudo isso suscita discussões no campo da comunicação.

O cerne da discussão sobre o clássico, na verdade, é algo que passa bem longe das quatro linhas. Existe uma crise política no futebol do Rio de Janeiro, e Flamengo e Fluminense são os dois clubes grandes que se colocaram como oposição à federação local (Botafogo e Vasco, em contrapartida, são defensores da gestão da entidade).

“Nosso relacionamento com a federação não existe. É inexistente. Não há o que ser conversado agora; nós simplesmente não temos por que sentar na mesma mesa”, disse Eduardo Bandeira de Mello, presidente do Flamengo, na quinta-feira (02).

Um dia depois, o técnico Vanderlei Luxemburgo concedeu uma entrevista coletiva extremamente performática. Punido por ter criticado o Estadual do Rio de Janeiro, o comandante do Flamengo recebeu suspensão de duas partidas. A equipe rubro-negro havia obtido efeito suspensivo, mas essa decisão foi derrubada. No domingo, contra o Fluminense, o auxiliar Deivid foi o responsável por comandar o time no banco de reservas.

Na coletiva, Luxemburgo avisou que sequer estaria no Maracanã para ver o jogo entre Flamengo e Fluminense. Além disso, minimizou o peso da suspensão e empilhou críticas à Ferj (Federação Estadual do Rio de Janeiro).

“Como cidadão, me senti violentado e agredido. Fiz muitas coisas pelas quais deveria ter sido punido, mas agora eu queria apenas a melhoria do futebol brasileiro. Tomaram uma goleada por 7 a 1 [para a Alemanha, na semifinal da Copa do Mundo] e estão buscando um caminho ainda. A federação não quer dar chance aos jovens, e foi por isso que eu me posicionei contra o regulamento que limita o número de inscritos no campeonato”, disse Luxemburgo.

“Não vou me posicionar mais. Só vou fazer isso quando tiver direito à liberdade”, completou o treinador, que depois pegou um esparadrapo e colou sobre a boca para completar o protesto.

No domingo, antes de a bola rolar, os jogadores de Flamengo e Fluminense deram sequência ao movimento iniciado por Luxemburgo. Perfilados para a execução do hino nacional, todos cobriram a boca com a mão.

No entanto, o maior protesto veio depois. Fred, camisa 9 e capitão do Fluminense, foi expulso. E não esperou sequer o término da derrota por 3 a 0 para o Flamengo para fazer críticas incisivas: “Hoje o nosso campeonato é o ex-campeonato mais charmoso do mundo. Nos ajudem. Queremos coisas mais claras, menos obscuras. Precisamos de apoio para brigar por isso”.

Após o término do clássico, o presidente do Fluminense, Peter Siemsen, deu razão a Fred. “Vocês estão vendo o que está acontecendo. Tudo que nós pedimos é isonomia. O Fluminense está tentando jogar e brigando pelas coisas em campo, mas assim está difícil. Olhem para a rodada toda para ver”, disse o mandatário em entrevista coletiva. No domingo (05), o Vasco, time extremamente próximo da atual gestão da Ferj, teve três pênaltis a seu favor em derrota por 5 a 4 para o Friburguense.

O último domingo foi o ápice de um processo que se arrasta desde as primeiras reuniões de conselho técnico do Estadual de 2015. Segundo levantamento do portal UOL, clubes e Ferj emitiram 27 notas oficiais com críticas nesta temporada – a briga tem sido concentrada nos sites das instituições.

Dois aspectos chamam atenção nessa crise institucional do futebol do Rio de Janeiro. O primeiro é a ilação: em cenários assim, é fundamental que as pessoas envolvidas tenham cuidado para não ligar pontos que não têm necessariamente uma conexão. O árbitro errou na expulsão de Fred? Outro juiz tomou decisões equivocadas ao anotar três pênaltis para o Vasco? Alguém tem prova concreta de que houve ação deliberada por causa da cisão entre equipes e Ferj?

Se existe prova, apresentar é fundamental. A discussão não pode ser balizada por suposições ou acusações vazias. Agora, se não houver algo concreto, as pessoas precisam entender o poder de formadores de opinião. De lado a lado, o risco de impingir coisas que não são necessariamente verdadeiras é enorme.

Outro ponto a ser discutido em toda essa história é até que momento o discurso basta. Notas oficiais, entrevistas e gritaria deixam clara a crise no futebol do Rio de Janeiro. A questão é: isso é suficiente?

Se os clubes quiserem realmente uma mudança, precisam apresentar demandas, propor fóruns de discussão e buscar soluções. Esse processo pode desembocar numa oposição formal à atual gestão da Ferj ou até numa ruptura – presidentes de Flamengo e Fluminense já aventaram a possibilidade de criação de uma liga paralela em 2016.

O risco de toda essa situação é reduzir a importância do atual momento do futebol do Rio de Janeiro. Flamengo e Fluminense têm obrigação de não permitir que a crise se transforme em choro de quem se sente prejudicado. O que existe é muito maior do que isso, e o contexto não aparece em entrevistas como as dos últimos dias.

Entrevistas e notas oficiais, aliás, são relevantes para marcar posição. Se os clubes não fizerem nada além disso, porém, os textos acabarão sendo inócuos.

Comparo o atual cenário do Rio de Janeiro com as recentes manifestações populares sobre política. Afinal, o que as pessoas queriam quando fizeram panelaços e foram às ruas? Quais eram as demandas? Quem organizou isso e tentou apresentar pedidos nos fóruns competentes para discutir isso?

Dizer que “está tudo errado” e criticar de forma indiscriminada pode ser legítimo, mas é pouco produtivo. Acontece na política porque as pessoas se sentem alheias à vida política do país – e esse é um processo que tem sido desenvolvido durante anos. No esporte, contudo, a posição dos clubes não é essa. São eles que sustentam o poder das federações e são eles que controlam o consumo da cadeia. Se houver um mínimo de organização e de discussões produtivas, a força deles é imensa.

O problema, como acontece em muitos outros assuntos do futebol brasileiro, é que dirigentes veem rivais como adversários ou concorrentes. Não existe um pensamento sistêmico que aborde necessidades e projetos coletivos, algo que as grandes ligas esportivas do p
laneta costumam fazer.

O que tem acontecido no Rio de Janeiro é apenas a exposição mais clara de um aspecto em que o Brasil ainda precisa evoluir de forma considerável. Usar a mídia para escancarar insatisfação pode ser produtivo, mas o peso sempre vai ser maior se as pessoas souberem por que estão brigando. 

Compartilhe

Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp
Share on email
Share on pinterest

Deixe o seu comentário

Deixe uma resposta

Mais conteúdo valioso