O futebol é um jogo defensivo

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O carnaval foi bem engraçado por aqui. Nós o comemoramos em abril. Oto, meu morcego de estimação, surpreendeu. Sua banda, a Sangue Bom, entre morceguinhos de nossa caverna e convidados, desfilou com mais de dez mil componentes. Arnaldo, o bagre cego, assistiu, ou melhor, ouviu as reprises dos desfiles de escolas de samba de São Paulo e Rio; não desgrudou os ouvidos da telinha. Delirava, de se revirar todo, sempre que a telinha anunciava algum famoso nos camarotes. E Aurora, a coruja, fantasiou-se de águia e voou solitária pelos céus que lhe cabem, de fato e de direito, em alegres evoluções.
 
Terminada a folia de Momo, procurei-os e disse-lhes que já me davam saudades as conversas sobre futebol.
 
– Carnaval é bom, mas cansa se passar de três dias – eu disse. – E já se passaram quatro. Futebol, esse pode ser o ano todo, se depender de mim. E eu queria a opinião de vocês sobre uns assuntos que me tiram o sono.
 
Havia coisas do futebol, que eu, por mais esforço que fizesse, não entendia. Oto estava de ressaca e não quis conversa; Arnaldo ouvia a televisão.
        
– Por exemplo? – perguntou Aurora.
 
– Não me conformo com essa excessiva preocupação de só defender, defender, defender – eu disse – como se todos, jogadores, técnicos e comentaristas, fossem golfóbicos.
 
E acrescentei que, ouvindo e lendo o que pensam sobre o futebol, percebo que falam o tempo todo sobre sistemas de defesa.
 
– Pois, para mim – disse Aurora – agem dessa maneira porque evitam o verdadeiro problema. Falam do óbvio, daquilo que está mais ao alcance de todos, do banal.
 
– Como assim? – distraí-me com o barulho da TV e não entendi bem o que a coruja disse.
 
– Que barulho é esse – ela me perguntou – vindo do fundo da caverna?
 
– É o Arnaldo ouvindo de novo aquele programa da ESPN sobre a pretensão do Brasil de ser sede das Olimpíadas em 2016. Cada vez que Carlos Nuzman fala, ele baba e faz essa barulheira.  
 
Com o bico, Aurora puxou-me para fora da caverna, evitando, assim, o barulho, e expôs seu ponto de vista. Para ela, o futebol é um esporte defensivo, isto é, um jogo que privilegia, por suas características, a defesa. A coruja acha que ter que controlar a bola com os pés favorece mais a destruição das jogadas que sua criação.
 
Nos jogos em que a bola é controlada com as mãos, há mais gols. É só tomar o exemplo do basquetebol e do voleibol; neste último, em que a bola não tem contato com o chão, a não ser na finalização da jogada, as mãos são soberanas, o que resulta em uma vitória retumbante do ataque sobre a defesa. No futebol, ao contrário, a pouca habilidade dos pés comparativamente à das mãos, faz com que os jogadores controlem a bola com muita dificuldade; além disso, um dos jogadores de cada equipe, o goleiro, o mais defensivo de todos, tem autorização para utilizar as mãos. Seu poder de destruição de ataques é imenso.
 
Perguntei a Aurora se ela acreditava mesmo nisso.
 
– Sem dúvida, Bernardo. Você já teve a curiosidade de contar quantos ataques realiza cada equipe em um jogo de futebol? Faça isso. Em noventa minutos, cada time realiza perto de noventa. No entanto, em quase todos os casos, a defesa supera o ataque. Ocorrem, em cada partida, cerca de três gols em média. Considerando que os dois times juntos realizam algo em torno de cento e oitenta ataques, são, em cada partida, cento e setenta e sete vitórias da defesa.
 
– E você já teve a paciência de fazer essa contagem, Aurora? – perguntei
 
– Sim, recentemente, em um jogo do Campeonato Espanhol. Em quarenta e cinco minutos, uma das equipes realizou exatamente quarenta e cinco ataques. Considerei ataque as ações realizadas pelos jogadores no campo adversário, partindo de seu próprio campo, ou após uma falta, um lateral ou escanteio.
 
– Então, na sua opinião, é muito mais fácil defender que atacar – concluí.
 
– Exatamente – confirmou a coruja – tirar a bola dos pés de um jogador é muito mais fácil que tirá-la das mãos. Além do que, a bola geralmente vai ao jogador rolando sobre um terreno irregular, tornando o controle mais difícil ainda.
 
Os pés são órgãos de locomoção; no futebol, e só no futebol, transformam-se em órgãos de manipulação. As mãos fariam isso incomparavelmente melhor. Não bastasse, os defensores podem defender suas equipes chutando a bola para qualquer lado, ao passo que os atacantes são obrigados a visar o pequeno espaço de 7,32m entre uma trave e outra.
 
– Mas, o futebol, então, é uma aberração? – perguntei.
 
– De maneira alguma – respondeu a coruja calmamente – é somente um jogo, e assim são os jogos, muitos deles, aberrações consentidas e maravilhosas.
 
Para Aurora, o problema do futebol não está na defesa, mas no ataque. Os especialistas não se preocupam com ele, não sabem como atacar. Uma pena, porque, quando eu era menino, sentia-se importante aquele que era atacante. Todos queriam ser centroavantes ou meias avançados. Ocupavam a posição de zagueiros os grossos, os canelas de pau. Na frente, ficavam os mais habilidosos. A coruja acha que os técnicos não sabem o que fazer para atacar, portanto, ocupam-se com o que é mais fácil: aumentar o poder de destruição dos defensores.
 
– Repare no que ocorre no basquetebol, Bernardo, um esporte em que ataque e defesa são bastante equilibrados. O atacante é protegido pelas regras; qualquer empurrão, com as mãos ou com o tronco, de quem defende, é considerado falta. No futebol os juízes fazem vista grossa para essas coisas; na dúvida, beneficiam os faltosos.
 
Para a minha amiga de penas, tanto faz um placar de um a zero ou cinco a quatro. O pavor de tomar gols, no entanto, volta as atenções quase todas para a defesa, atribuindo ao ataque ao papel de coadjuvante de terceira categoria. Esse pavor diminui os investimentos e planos de ataque, tornando escassos os jogadores habilidosos e super-povoando os campos de beques truculentos.
 
– As defesas tomarem gols não seria um grande problema – disse Aurora -, se os ataques os fizessem em boa quantidade. Nossos estrategistas não estudam boas fórmulas para
aumentar a eficiência dos ataques, daí a escassez de gols. Chega a ser ridículo ver, quando dos escanteios e faltas cobradas das laterais, a ida à área adversária, dos zagueiros, como se as equipes não tivessem atacantes.

Aurora queria dizer, resumindo, que os técnicos e outros especialistas, evitam lidar com o verdadeiro problema do futebol, que é atacar. Um esporte que favorece tanto a defesa como o futebol, só poderia ter como maior problema, atacar. Esse é o obstáculo maior a superar. Defender é fácil; os zagueiros ajudam a defender, a grama ajuda a defender, os encontrões, os esbarrões, as faltas, a dificuldade de controlar a bola com os pés, e os juízes, ajudam a defender. Os especialistas apenas pegam carona em tudo isso.

* Bernardo, o eremita, é um ex-torcedor fanático que vive isolado em uma caverna. Ele é um personagem fictício de João Batista Freire.

Para interagir com o autor: bernardo@universidadedofutebol.com.br

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