O que faz um bom jogador? – Parte I

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Trent Alexander-Arnold: um pouco de indisciplina para fugir à norma. (Foto: Reprodução/futebolstats.com.br)

 
Na segunda quinzena de dezembro, não me lembro ao certo a data, assistia às semi-finais do Mundial de Clubes da FIFA, Liverpool e Monterrey. Vocês se lembram que apenas por volta dos 30 minutos do segundo tempo, Jurgen Klopp colocou em campo este exímio lateral que é Trent Alexander-Arnold, que estava no banco até então (provavelmente por resguardo físico). Cinco minutos depois, Arnold deu uma assistência obscena para o gol de Roberto Firmino (você pode ver aqui, a partir de 1:35), que garantiria a classificação dos ingleses à final.
Naquele mesmo dia, lembro de ter escrito em algum lugar que uma assistência daquela só pode vir de um jogador indisciplinado. Mas vejam bem, não digo indisciplinado de um ponto de vista negativo. Digo indisciplinado do ponto de vista do pensamento. Um sujeito que pensa de maneira demasiado disciplinar, organizada, linear, jamais veria o espaço nem tomaria a decisão que o Arnold tomou naquele lance. É preciso um grau de subversão muito grande para dar asas à criatividade.
Neste texto, que divido em duas partes, gostaria de conversar um pouco melhor sobre isso, e trabalhar com vocês algumas dessas características que nos dizem o que faz um bom jogador. Não pretendo falar das coisas que já sabemos (técnica, tática e etc), mas de outras coisas, que talvez estejam antes delas. Vejamos.

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Como escrevi naquele dia, acho que de fato uma das características centrais do bom jogador (e pense neste bom jogador em todos os níveis, desde a iniciação até o rendimento) seja exatamente uma certa indisciplina, uma indisciplina do pensamento. O bom jogador é aquele que é tão treinado na arte de pensar e sentir o jogo, na arte de fazer agir por si mesmo, tão autônomo na sua ação, que acaba criando soluções que talvez os outros não vejam, soluções que estão para muito além da média, da capacidade de percepção média. Como eu li outro dia, num desses livros do Jorge Larrosa (Nietzsche & a Educação, Editora Autêntica), é preciso uma certa disciplina da indisciplina – neste caso, uma certa regularidade na arte de pensar fora da curva.
Só que isso presume, da mesma forma, que haja um certo grau de liberdade, concordam? E quando falo em liberdade, neste sentido, me refiro especialmente ao processo de treino. Nós vivemos um tempo em que nos é vendida, de maneira explícita ou não, uma certa ilusão de controle (principalmente para nós, que nos aventuramos como treinadores e treinadoras), uma terrível ilusão de controle sobre o jogo, como se fosse possível e/ou desejável amarrar uma coleira ao jogo jogado e dominá-lo como bem quiséssemos. Aliás, sinto que isso ocorre, dentre outros motivos, por uma interpretação ligeiramente equivocada do jogo de posição espanhol (posso retomar este tema num outro momento). O fato é que, na tentativa de controlar a posição, de exigir dos atletas que guardem determinadas localizações no campo, inclusive na iniciação esportiva (onde o foco principal deveria ser deixar as crianças jogarem), podemos acabar ferindo, às vezes com violência, justamente a criatividade dos nossos artistas (em potencial), podemos tirar deles a capacidade de inventarem novas soluções por si, e desenvolvendo atletas muito dependentes das instruções do treinador, não fazemos muita coisa além de alimentar nosso próprio ego, enquanto matamos exatamente a indisciplina do pensamento, que poderia fazer com que eles fossem ainda mais do que já são.

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Da mesma forma, sinto que o bom jogador tem um certo grau de negação. Deixem-me explicar melhor. Lembro daquela frase do enorme filósofo que foi o Albert Camus, que dizia que ‘o homem é o único ser que se nega a ser o que é’. De fato, nós nunca estamos satisfeitos, como se estivéssemos em uma busca constante de ser mais e melhores do que já somos. O que talvez não fique tão claro, mesmo que sutilmente, é que talvez só seja possível fazer mais e melhor se negarmos, de alguma forma, o que existe. Mas não é uma negação rancorosa e frustrada, é uma negação que deseja, basicamente, afirmar o mundo de outra maneira. Daí que o bom jogador aceite o presente, mas não se conforma inteiramente, ele quer mais, ele deseja ser mais e melhor, como se fosse um daqueles animais famintos, à procura do instante do bote.
Por isso este traço de negação, este certo traço de negatividade, não deve ser visto como algo necessariamente ruim e, digo mais, ele pode ser estimulado justamente pelo processo de treino. Em uma outra oportunidade, citei aqui este ótimo intelectual que é o Byung-Chul Han, que tem alertado para a nossa vertigem pela positividade, as nossas ferozes tentativas de fugir do negativo e do incômodo da vida, em nome de uma alegria às vezes tão infértil, ou uma alegria um tanto quanto aparente, que pode servir apenas como maquiagem. Mas o treino, não sei se vocês concordam, é precisamente o espaço no qual também apresentamos, à nossa forma, o papel do negativo, do erro, do desconforto, das possibilidades que surgem exatamente pelo desconforto – e não apesar dele -, as possibilidades de superar-se a si mesmo.
E este tipo de negação, essa tentativa de negar para afirmar, de negar o normal em nome do original (como fez o Arnold naquele lance), também parece uma característica que distingue o bom jogador.

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Até agora, portanto, falamos de um certo grau de indisciplina e um certo grau de negação. Fiquem à vontade para dizer o que pensam nos comentários.
Continuamos em breve.
 

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