Sobre a fidelidade ao modelo e coragem

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Foto: Lucas Merçon/Fluminense Football Club

 
Quando Miguel Cardoso (hoje no Celta de Vigo) era treinador do Rio Ave, viralizou este vídeo. Aqui, ele responde ao jornalista que o pergunta o motivo por que, apesar de estar perdendo e a poucos minutos do fim do jogo, sua equipe não fez nenhuma ligação direta para a área. Em linhas gerais, Cardoso diz o seguinte: é preciso fidelidade ao modelo. Ajustes estratégicos são necessários a todos nós, treinadores e treinadoras, mas eles seguem por arrastamento. O modelo é o guia.
Digo isso porque, neste Flamengo x Fluminense jogado ontem, passou batido este mesmo detalhe: reveja os dez minutos finais e conte quantos lançamentos à área do Flamengo foram feitos. Posso estar errado, mas senti que houve uma falta, na lateral-direita, já nos três ou dois minutos finais, em que talvez o próprio Fernando Diniz tenha imaginado um lançamento à área – mas a falta já havia sido cobrada. Curta. Fidelidade ao modelo.
Ao contrário de alguns colegas, interpretei este clássico como um jogo rico – talvez não rico na forma, mas sim no conteúdo – razão pela qual faço questão de publicar este texto. Do ponto de vista humano, o jogo mais interessante que assisti no Brasil neste ano.

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Como já dissemos algumas vezes, não é possível enxergar o jogo se nossos olhos ignoram a humanidade de quem joga. O jogo é um reflexo, pintura de um quadro que já existe nas ideias e se concretiza no campo. A primeira representação disso no jogo de ontem, está na decisão do Flamengo em não subir as linhas na primeira fase da construção ofensiva do Fluminense. Imagino que a ideia fosse atrair – sabendo da vocação tricolor – para explorar os espaços em transição. Exatamente como fez Gabriel, logo nos primeiros minutos.
Trata-se de uma escolha tática? Não. É uma escolha humana. Para além da estrutura, existe respeito. O Flamengo mostrou, através de uma escolha tática, que respeita o Fluminense como uma equipe capaz de construir por baixo, o que significa quebrar, em potencial, as linhas adversárias. É uma escolha simbólica, por uma simples razão: respeito não se impõe. Respeito se conquista. Em pouco mais de quarenta dias, o Fluminense já é capaz de fincar uma bandeira, uma identidade que o faz singular. Do ponto de vista do treino, isso é muito significativo.
Nas circunstâncias em que podia subir as linhas, o Flamengo admitia o risco de ser superado. Houve uma situação, em particular: Daniel, em algum momento do primeiro tempo, encontrou uma quebra que terminou com Luciano recebendo às costas de Diego, já na intermediária ofensiva. Essa situação foi particularmente interessante, porque já havia sido anunciada, de maneira implícita. Um dos motivos que fazem Gustavo Cuellar ser o ótimo jogador que é, é uma espécie de hiperatividade, uma busca de onipresença defensiva – que lhe permitiu, por exemplo, aquele belíssimo (e sutil) desarme sobre Yony González, no segundo tempo. Mas essa hiperatividade também o conduz a certos equívocos, como uma perseguição, também no primeiro tempo, sobre Daniel, que tenta um desmarque no seu setor e é acompanhado imediatamente. Mas este movimento abriu um espaço enorme às costas, entre as linhas, claramente percebido por Luciano, que exigiu uma rápida leitura exatamente de Diego. O portador da bola (não me recordo agora se Airton ou Digão) não conseguiu encontrar o passe. Mas a situação estava ali.

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As boas equipes não esperam pelas situações. Situações devem ser criadas ao longo do tempo. Este é um ponto importante para entender o jogo de ontem, pois havia, no geral, um contexto desconfortável para o Fluminense. Atacar contra uma equipe que não precisa da vitória e que se defende em bloco médio/baixo já não é simples, mas sinto que o 4-1-4-1 (como fez o Flamengo ontem), traz dificuldades bastante particulares. O fato de haver uma outra linha entre as linhas (o volante, no caso) induz a equipe que ataca a ficar com a bola dez ou quinze metros mais distante do gol. Se o jogador entre as linhas, que funciona como se fosse um pêndulo, for um Cuellar, torna-se realmente difícil construir por dentro, ainda que o Fluminense tenha mecanismos a partir do passe de Daniel ou das flutuações de Luciano. Quando os caminhos estão congestionados por dentro, é preciso considerar os lados.
Daí a importância da profundidade dos laterais do Fluminense no começo da construção. Que eles sobem quando Airton baixa não é uma novidade. Mas como eles sobem? Tenho a leve impressão de que, em alguma medida, a profundidade é assimétrica, uma vez que o corredor esquerdo costuma estar ocupado por Marlon (ou Mascarenhas) e Everaldo, enquanto o mesmo não ocorre no outro corredor, onde Ezequiel, embora auxiliado por Bruno Silva, tem mais liberdade – o que lhe permite profundizar a ponto de fazer o gol que fez contra a Portuguesa. Tive a impressão que Bruno Henrique, extremo pela esquerda, tinha dificuldades em conciliar a pressão que deveria fazer em Matheus Ferraz quando este conduzia a bola livremente, com os cuidados que deveria ter em relação a Ezequiel, às costas. Talvez o Fluminense pudesse (e pode) causar danos razoáveis naquele setor, especialmente se conseguir criar superioridades numéricas mais regulares.
Se o futebol é um jogo de tempo e espaço, e se há uma boa equipe cortando pela raiz o tempo e espaço necessários à outra, não surpreende que tenha havido poucas chances de gol no primeiro tempo. De cabeça, lembro-me apenas do cabeceio de Rhodolfo, defendido pelo seu xará. Escapou aos colegas que o Fluminense faz marcação mista nos escanteios, e Rhodolfo era um dos marcados individualmente. Houve um pequeno descuido, daí a liberdade para cabecear. Aliás, a título de curiosidade, é muito interessante a superioridade de Matheus Ferraz pelo alto. Ontem, foi admirável na defesa. No ataque, seus gols não são coincidência. É movimento recorrente nas bolas paradas ofensivas, que também envolve um jogador de meio-campo. Deixo aos colegas analistas que observem.

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Também senti uma euforia razoável sobre o comportamento pressionante do Fluminense em transição. Também não deveria ser novidade. Mas vamos investir algumas linhas aqui, é um tema importante.
Desde os primeiros instantes, o Fluminense buscou pressionar a construção ofensiva do Flamengo. Mas quais são as referências quando queremos introduzir um comportamento desses? Bom, vamos pensar em referências individuais, individuais por setor ou zonais. Qual das três mais se encaixa com este Fluminense? Tenho a impressão de que a ideia é zonal, mas a execução ainda não o é, plenamente. E isso não é uma crítica, mas um reflexo da profunda dificuldade inerente à tarefa de construir comportamentos coletivos (função da comissão técnica), assim como da dificuldade em executar a pressão dentro do campo, com os milhões de estímulos que jogadores devem mediar a cada instante.
Vamos pensar em uma pressão zonal. Qual é a nossa referência? É a bola. Ocupamos o espaço em função da posição da bola. Ou seja, então a pressão não é responsabilidade de um ou dois atletas. É responsabilidade da equipe inteira. De acordo com o movimento da bola, o goleiro se adianta para uma cobertura, o extremo oposto à bola fecha o corredor central, mecanismos de compensação acontecem incessantemente, de maneira sincronizada, para minimizar as possibilidades de progressão do adversário. Neste sentido, acho importante observarmos a importante margem de melhora que ainda há neste Fluminense. Por exemplo, ainda não me parece que os laterais estejam suficientemente confortáveis para subir quando o extremo à sua frente pressiona, deixando o lateral adversário livre (isso aconteceu vez ou outra ontem). Ao mesmo tempo, se essa cobertura acontece, os zagueiros também reagem, o lateral oposto idem e são esses infinitos movimentos compensatórios que fazem os comportamentos de pressão serem tão difíceis ao longo do tempo.
Houve um debate ontem sobre o quanto isso seria desgastante do ponto de vista físico, mas não é disso que se trata. O desgaste maior é mental.
Mas a mente também é treinável.

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Quando atacado, este Fluminense se defende em 4-4-2. Isso já é sabido. Mas podemos ser mais detalhistas. Quero dedicar algumas linhas ao comportamento da segunda linha defensiva e ao balanço ofensivo.
Começando pelo fim: posso estar errado (escrevo todo o texto tendo visto o jogo apenas uma vez, ao vivo), mas o comportamento de Luciano e Yony González, quando o Fluminense se organizava para se defender no próprio campo, era bem diferente do comportamento de Gabriel, quando o Flamengo se defendia. No segundo caso, não só havia menos agressão aos zagueiros (o que também era difícil, pois quando Airton baixava, havia uma situação de 3 v 1), como ficava implícita uma certa expectativa pela transição, como já falamos acima, o que deixava o próprio Gabriel um pouco mais distante das linhas defensivas, próximo do espaço que gostaria de atacar. Aliás, do ponto de vista estratégico, acho uma escolha absolutamente coerente.
Mas, no caso tricolor, não foram poucas as situações em que Luciano e Yony participavam ativamente da defesa – inclusive, quando preciso, com os dez jogadores de linha atrás da bola, no próprio campo. Quando o Fluminense modula o espaço assim, com os jogadores responsáveis pelo balanço ofensivo tão próximos da defesa, as mensagens implícitas são, no mínimo, duas: I) defender não é coisa dos defensores, apenas – defender e atacar são obrigações da equipe inteira; II) se a ideia é transitar por baixo, então quanto mais linhas de passe próximas aos potenciais locais de recuperação da bola, melhor (daí a importância da zona, que falamos acima). Ataque e defesa não existem separadamente. Ataque e defesa não se separam. Eles podem não ser visíveis ao mesmo tempo, o que não significa que não existam conjuntamente.
Sobre a segunda linha defensiva, penso o seguinte: assim como o desgaste cognitivo influencia na regularidade do bloco quando as linhas sobem, também há desgastes importantes quando a defesa precisa organizar o espaço no próprio campo. Não posso dizer se é uma característica do modelo ou se foram pequenos equívocos (como me pareceu), mas tenho a impressão de que esta linha (Everaldo – Daniel (Dodi) – Airton – Bruno Silva) será ainda melhor se conseguir ajustar-se em largura menor, especialmente quando o adversário estiver com a bola nas laterais. Ontem, vez por outra, senti que havia espaços tanto por dentro, quanto no setor oposto à bola (entre o extremo oposto e o meia). Mas, repare bem, isso é absolutamente compreensível. O modelo tem um tempo próprio. Em geral, diferente do nosso.
A primeira linha (zagueiros e laterais), por sua vez, me parece mais coordenada, especialmente em largura. Digão, aliás, fez uma leitura muito precisa ontem, em algum momento do primeiro tempo, quando percebeu uma distância importante entre as linhas e cortou um passe vertical potencialmente desastroso.

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Em um texto recente, escrevi neste mesmo espaço que o bom futebol é ato de coragem. Da noite de ontem até agora, parece que isso ficou mais claro, especialmente em razão das substituições efetuadas por Fernando Diniz. Tenho dois comentários sobre elas.
O primeiro já foi dito por alguém: a entrada de Marquinhos Calazans na ala direita também não é uma novidade (já havia sido feita contra o Vasco). A questão é: por quê ele? Dos diversos caminhos, me ocorre o seguinte: em condições normais, o Fluminense abre o campo em largura com um jogador que tende ao centro (Everaldo, destro) e outro jogador que tende ao fundo (Ezequiel, destro). Ezequiel é mais associativo, Everaldo é mais vertical. Luciano, é importante citar, flutua com liberdade, mas mais de dentro para fora do que o contrário. Quando Calazans entra na direita, o Fluminense não apenas ganha mais uma opção de drible pelo lado, como tende, agora também pela direita, ao corredor central. Dali, talvez saia uma finalização de média distância, uma tabela por dentro, talvez um cruzamento… as possibilidades são infinitas. Há riscos defensivos? Óbvio que sim. Mas o bom futebol é ato de coragem.
Sobre a entrada de Caio Henrique no lugar de Marlon, tive a impressão de que, ao contrário dos outros jogos, Caio jogou ligeiramente deslocado para a esquerda, o que não significa que foi um lateral. Quem dava largura era Everaldo. Nessa estrutura, havia portanto mais uma opção de passe interior, finalização de média distância e etc. Mas o ponto interessante é defensivo, pois causou uma certa surpresa o fato de Airton não ser deslocado para a linha de zagueiros. Mas por que deveria? Quem precisava do gol era o Fluminense, ou seja: era preciso estruturar o espaço para estar com o maior número de jogadores, o mais próximo possível do gol. Em caso de contra-ataque, como houve uma situação com Gabriel, também no segundo tempo, ainda havia superioridade numérica (Matheus Ferraz e Digão). Há riscos defensivos? Sim, talvez. Mas o bom futebol é ato de coragem.
Embora soe mágico e cause euforia, tenho alguma segurança em dizer que as duas situações não apenas são previamente planejadas, como treinadas. Comportamentos de emergência (lembrando aqui o colega Rodrigo Leitão) não são exatamente improvisados. São treinados e, aos que querem usá-los, são treináveis.

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No domingo, o Fluminense enfrentará uma equipe que, salvo qualquer mudança, estrutura a defesa de uma forma um pouco diferente (4-4-2) e que tende a pressionar mais no início da construção. Quando em vantagem, talvez baixe o bloco. Mas como reagirá se estiver em desvantagem? São todos detalhes importantes, pois exigem alterações estratégicas. Mas isso não significa (e este é um ponto fundamental) mudanças em nível macro. É preciso fidelidade ao modelo.
Os contornos dramáticos e o gol tardio fizeram o clássico desta quinta bastante emblemático. Espectadores externos, sem forte envolvimento emocional com os clubes, provavelmente saíram do jogo se sentindo bem, como aconteceu comigo. O futebol é isso, gera sensações: às vezes ótimas, outras vezes terríveis. Se nossas equipes causam mais sentimentos inferiores ou, especialmente, se nossas equipes causam indiferença, é porque algo está errado.
Independentemente dos resultados (que vieram e que virão), o Fluminense causa boa impressão, dentre outros motivos, não apenas porque tem consigo uma identidade, mas porque, em pouco tempo, adquiriu a coragem necessária para assumi-la.
E isso também não é uma surpresa. Não deveria ser.

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