Sobre a fluidez das estruturas táticas

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Frenkie de Jong: um exemplo da fluidez inerente às estruturas táticas (Divulgação: ESPN)

 
Corria o ano de 2010 e eu, já com atenção redobrada, assistia à Copa do Mundo da África do Sul em busca das ideias e dos padrões que se desenvolviam à época. Se a memória não falha, terminamos aquele mês sob o domínio do 4-2-3-1. Aliás, talvez este tenha sido o primeiro mundial coberto pela nova geração de analistas que se desenvolvia no Brasil, que partia de um olhar mais acurado da tática para a compreensão do jogo. Nas rápidas mudanças do jornalismo (e da sociedade), me parece que foram cometidos alguns equívocos neste processo, embora não seja meu objetivo analisá-los aqui. O fato é que a África do Sul talvez tenha aberto caminho para um movimento que, na sua origem, é saudável.
Voltando ao assunto, uma das seleções que me interessavam à época foi Gana. Lembro claramente de destacar, nas minhas anotações, uma espécie de 4-2-3-1 híbrido, cujo elemento de desequilíbrio era Kevin-Prince Boateng. Dono de uma fisicalidade obscena, ele sabia muito bem oscilar entre o 1-4-1 do momento defensivo e a exploração do espaço no ataque (prova disso está aqui, a partir dos 0:45). Aquela estratégia, evidentemente, não apenas era possível em razão das qualidades do próprio Boateng, como também em razão da ausência de um meia central: sem ele, havia espaço a ser atacado por dentro. Outros jogadores, do mesmo nível ou superior, como Arturo Vidal, Frank Lampard, Steven Gerrard ou mesmo Paulinho (não me reduzo aqui à qualidade, mas a características mais genéricas) se beneficiaram, em algum momento, da capacidade de transladar entre as duas áreas na ausência de um meia central.
Mas no caso ganês, me diga uma coisa: nós falávamos então de um 4-2-3-1 ou de um 4-1-4-1? O Brasil, que recém disputou, honrosamente, a última Copa do Mundo, jogava em um 4-1-4-1 ou em um 4-3-3? Estes dilemas, para treinadores e analistas em geral, são mais elaborados do que aparentam. Se visitarmos a Filosofia (como deveríamos fazer mais), encontraríamos algum conforto no Paradoxo de Sorites, que dificulta a separação entre dois eventos. Assim como não é tão simples definir com quantos grãos de areia se faz um monte, também não sabemos, em linhas gerais, o que diferencia uma estrutura tática da outra, para além das ideias previamente estabelecidas por nós mesmos. Isso ocorre porque o jogo não existe para atender às demandas estruturais, mas é a estrutura que deve responder, rápida e alternadamente, aos problemas do jogo. Por isso, não me parece indicado um olhar estanque para as estruturas, visto que o jogo é fluido e as estruturas, sendo parte dele também o são. Como tenho postulado recentemente, o jogo não é, ele está.
(ora com Boateng na linha, ora vários metros acima, por exemplo).
Um dos equívocos que me parecem na essência deste debate está exatamente no nosso olhar sobre o que é a tática. Ou, se você preferir, sobre o que a tática não é. Na esteira das novas análises de que falei acima, desenvolvemos também uma ideia – chancelada por parte dos nossos colegas jornalistas -, de que a tática se resume às estruturas. Ou seja, a tática, em si, se encerraria no 4-4-2 ou no 4-3-3. Mas é evidente que não: a tática é um fenômeno que está para muito além! As estruturas são simples postulados, são uma manifestação micro dentro do grande universo tático. É por isso que um passo mais do que necessário para o debate é consolidar, tanto quanto possível, as bases de um entendimento mais profundo sobre a natureza do jogo, a imprevisibilidade, a seriedade, as regras de ação – não apenas explícitas – o lugar do erro (visto que se trata de atividade humana, em nada mecânica) e todas as outras variáveis que nos façam perceber a estrutura como uma manifestação secundária, terciária, mas não principal. Ou seja, é preciso perscrutar o que está antes da estrutura.
Estes são alguns dos motivos que me fazem ter reservas em relação à existência de uma suposta estrutura tática ‘ideal’, simplesmente porque o jogo não é ideal, o jogo é real. As mesmas estruturas, com atletas diferentes, em contextos diferentes, ou simplesmente em jogos diferentes (no mesmo treino, por exemplo), logicamente terão respostas diversas. O que me parece mais saudável é refletir sobre qual estrutura tática mais agrada a um determinado treinador ou treinadora.
No meu caso, por exemplo, estou em afinidade temporária com o 3-4-2-1. Por quê? Em primeiro lugar, porque contempla quatro linhas tanto para o ataque (a priori, permite mais escalonamentos) quanto para a defesa (a priori, mais uma linha a ser quebrada pelo adversário). Além disso, me agrada a democratização do corredor central ofensivo (não mais como propriedade do camisa dez, de que falávamos acima), podendo tanto ser ocupado pelos dois meias, quanto por nenhum deles, liberando espaço para um dos meias da linha anterior. Também me parece uma estrutura saudável para a primeira fase de ataques apoiados, em razão das elevadas possibilidades de linha de passe desde o início da construção (podendo inclusive ter um dos zagueiros às costas dos atacantes adversários, como faz o Bétis, de Quique Setién). Melhor ainda se um dos zagueiros for híbrido, acumulando as qualidades de um meia. No cenário internacional, Frenkie de Jong certamente é um exemplo importante. No Brasil, um jogador que me parece guardar as qualidades para exercer bem essa função – ao seu modo – é Fábio Santos, do Atlético Mineiro. Com o devido amadurecimento, também vejo Igor Liziero, do São Paulo, quebrando linhas desde os primeiros metros.
Por ora, me parece um bom começo. Estou mais do que disponível para impressões nos comentários. Continuamos em breve.
 
PS: nos meus artigos sobre tática, prefiro numerar as estruturas táticas sem citar o goleiro (4-2-3-1, por exemplo). Evidente que não é por desleixo. Tenho razões para isso e pretendo desenvolvê-las em breve.

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