Sobre o futebol como prática da vida

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Diego Simeone, enquanto jogador: o jogo jogado (e treinado) é a vida vivida. (Foto: Reprodução/Football Whispers)

 
Nós já falamos algumas vezes, neste mesmo espaço, sobre a potência pedagógica e sobre a potência existencial do futebol. Por sinal, aqui me ocorre aquela frase (que poderia ser mais famosa) do conhecido Albert Camus, que dizia: ‘O que eu mais sei sobre a moral e as obrigações do homem, eu devo ao futebol’. Bom, não acho que ele foi o único.
Repare como uma frase dessas tem um movimento de ida e volta: por um lado, ela mostra como o futebol é capaz de ensinar e como os saberes que aprendemos nele (bons ou ruins) são levados para a vida vivida. As fronteiras que separam a vida que se vive do jogo, que se joga são muito pequenas, muito frágeis, e talvez estejam dispostas em pelo menos duas grandes formas: nas ações individuais, que muito antes de tratarem de coisas táticas, técnicas ou físicas, tratam de coisas humanas (embora façam isso escondidas, nos detalhes, o que exige ler além das linhas) e nas ações coletivas, que para muito além de coisas táticas, técnicas ou físicas, tratam de alguma forma do estado de espírito de uma determinada equipe (veja este Flamengo, por exemplo). Só que o estado de espírito de uma equipe, assim como o nosso próprio estado de espírito, não apenas não depende só da gente, como não pode ser capturado. Daí que mesmo os mais precisos dados, mesmo milhões de informações sejam, por vezes, muito pouco para captar os sentidos do humano. As coisas subjetivas não são incômodas por serem “menos confiáveis”, mas são incômodas porque não se deixarem ser inteiramente vistas e medidas, são sempre oblíquas, e tudo aquilo que não pode ser visto e medido, tudo aquilo que causa alguma ambiguidade, tudo aquilo que causa dúvida, também causa um certo pânico – muitas vezes não admitido. Se você tem dúvidas, repare para onde têm ido essas discussões sobre o VAR.
Mas por outro lado, saber sobre a vida é saber sobre futebol. Porque se as fronteiras que separam o futebol da vida (como as fronteiras que separam a teoria da prática) são tão pequenas, ou melhor, se o futebol é uma dessas ilustrações tão fieis da vida, da nossa pequenez perto da vida (e do jogo), das oscilações da vida (e do jogo), da coragem de que precisamos para viver a vida (e jogar o jogo), da solidariedade que precisamos no jogo (e na vida), da amizade em que nos apoiamos no jogo (e na vida), da dor que vai aparecer no jogo (e na vida) e da humanidade que ainda temos neste jogo – que é sempre único – e nesta vida, que talvez seja única, se tudo isso está tão próximo, se essas coisas são as mesmas coisas, só que de outro jeito, então não é possível pensar na formação de um atleta que não esteja se formando para a vida, não é possível pensar em uma equipe que não seja equipe para vida, não é possível separar teoria e prática (pois o jogo que se joga é a vida que se vive), não é possível separar o jogo da vida. Tudo é um.
Não sendo possíveis essas separações, então temos que fazer perguntas e assumir responsabilidades. Quais são as teorias que sustentam a minha prática? Qual é a coerência entre o meu discurso e meu ato? De que forma o meu modelo de jogo representa quem eu sou e de que forma isso permite fazer dos meus jogadores e equipe melhores do que estão? Quem sou eu e para onde vou neste exato momento (pergunta mais difícil do que parece)? No que eu posso melhorar como treinador neste exato momento? No que eu posso melhorar como jogador, para chegar em um nível mais alto? Quais são os meus limites, como jogador, como treinador, como profissional do futebol em geral, até onde eu posso ir e o que me diferencia dos outros? Por que eu faço o que faço hoje, por que uso meu tempo da maneira como uso, por que jogo do jeito que jogo, por que vivo do jeito que vivo e o que poderia fazer para jogar e para viver de outra forma? O que me aproxima e o que me separa dos outros?
E quando falamos de linha de quatro, quando falamos de amplitude, quando falamos de bloco alto ou baixo ou de microciclo estruturado, quando falamos de CK ou percepção subjetiva de esforço, quando falamos de jogos conceituais ou contextuais, quando falamos de metabolismo anaeróbio alático ou lático ou aeróbio, quando falamos de 4-3-3 e 4-4-2 e 2-3-5 e etc, quando falamos dessas coisas que falamos, penso se lembramos do jogo que se joga, portanto da vida que se vive, se não nos esquecemos disso e se ainda faz parte da nossa humanidade.
 

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