Sobre o jogo que não se joga com os pés

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Sergio Busquets: o futebol que não se joga com os pés (Divulgação: ESPN)

 
Num passado não muito distante, tive uma experiência bastante agradável como treinador nos Estados Unidos. Basicamente, trabalhei com garotos e garotas entre 4 e 17 anos, durante o verão americano, em um contexto substancialmente permeado pela iniciação esportiva, mas com alguns jogadores e jogadoras (especialmente elas) que tinham, nitidamente, maior facilidade para jogos com a bola nos pés. Como os leitores e leitoras bem sabem, americanos têm maior facilidade para modalidades executadas com as mãos (futebol americano, basquete, hoquei e beisebol, por exemplo), mas não são exatamente íntimos com as modalidades que exigem trato com os pés. Parece, aliás, um tema interessante para nossos colegas sociólogos.
Considerando o contexto, gostava de recorrer, geralmente no primeiro dia, a um artifício que usava como meio para estimular a racionalidade daqueles pequenos e pequenas, ainda ingênuos sobre eles mesmos e sobre o mundo, vários deles herdeiros do (aparente) conforto econômico americano. Em algumas das primeiras conversas, eu fazia uma pergunta bastante simples: com qual parte do corpo nós jogamos futebol? Os garotos e garotas, em uníssono, respondiam: com os pés, coach! Eu respondia que não, não é com os pés. Dependendo da ocasião, repetia a pergunta: com qual parte do corpo nós jogamos futebol?
Alguns dos pequenos e pequenas repetiam a resposta (como se quisessem jogar comigo), enquanto outros já pareciam incomodados, buscando outro caminho – exatamente o que eu queria. A minha pergunta, em alguma medida, era socrática, pois carregava uma pequena ironia (eironeia): eu sabia a resposta, mas meus pequenos interlocutores, ainda não. Alguns deles, eventualmente, chegavam perto ou mesmo no exato lugar que eu esperava. Quando não, logo após a segunda pergunta, eu mesmo dizia: o futebol não se joga com os pés, buddies. Se joga com o cérebro!
É claro que, em português, cérebro não é o melhor termo. Mas é importante dizer que nos EUA, até uma certa idade, é terminantemente proibido cabecear a bola, em qualquer situação (razão pela qual não era razoável dizer que se joga com a cabeça). Mas a essência estava ali: os pés apenas desenham o que se passa na mente, e quanto mais saudável e criativa ela for, melhores serão os pés. Na condição de treinador/educador, me parece razoável estimularmos nossos pequenos e pequenas, desde a mais tenra idade, a perceberem que seu desempenho não está atrelado a um suposto dom, um presente divino que, por si só, definiria os bons e os maus. Jogadores e jogadoras não são, apenas estão. Para se jogar bem futebol, é preciso modular, através do processo de treino-jogo, o tempo e o espaço (e o engano, diz Menotti) que são as chaves para, aí sim, responder aos problemas do jogo, na sua inteireza.
É claro que nada disso se encerra na iniciação. Meus colegas da especialização e do rendimento bem sabem da importância de desenvolvermos o indivíduo que está para além do jogador. Para isso, é evidente que não basta educar somente as pernas e os pés, é preciso educar a mente e o coração. Me parece razoável sonharmos com jogadores e jogadoras que saibam refletir com autonomia, que sejam donos e donas de si, capazes de olhar para o espelho e para os outros com uma criticidade que, como podemos perceber, está em falta nestes tristes dias em que vivemos. O processo de treino é um processo pedagógico e nós, treinadores e treinadoras, somos educadores do ser, responsáveis diretos e indiretos não apenas pelos resultados do fim de semana, como também pelo destino, ainda que em parte, de atletas que, por onde forem, carregam junto uma pequena ou grande parcela daquilo que lhes deixamos. Como cada atleta é único, é claro que cada um se apropriará à sua forma do que fizermos, razão pela qual, como já dissemos aqui, é imprescindível que nosso esforço, como treinadores e treinadoras, seja no sentido de ampliar nossas fronteiras, de nos tornarmos nativos e estrangeiros, de nos tornarmos plurais, uma vez que um treinador, em um grupo de atletas, não é apenas um, são vários.
Quando leio, na The Tactical Room #45, a ótima entrevista da bióloga Loles Vives com Richard Pruna, médico-chefe do Barcelona, me admira a conversa sobre a importância dada no clube ao assim chamado treinamento cognitivo. Para Pruna, trata-se de ‘propriedades intelectuais que ostenta o jogador e que afetam seu rendimento no campo, como a capacidade de processamento de informação, conhecimento, experiência, tomada de decisões, tempo de reação, timing, memória de curto e longo prazo, visão, audicão, processamento senso-motor, atenção, estímulos cognitivos, antecipação e percepção do tempo e do espaço’, todas habilidades treináveis. Ora, parece mesmo que o futebol não se joga com os pés! Quando os atletas se lesionam, Pruna faz questão que se mantenham os treinamentos cognitivos, pois não é indicado que se afrouxem os músculos da cognição, que se percam as ‘habilidades mentais’, que sustentam jogadores de tamanha inteligência para aquele contexto. Um dos grandes exemplos certamente é Sergio Busquets, longe de ser o mais físico dos atletas, mas dono de uma inteligência absolutamente descomunal.
Mas repare que, agora, não mais falamos apenas da inteligência, da racionalidade, mas também dos sentidos – o que reforça nossa hipótese de que não basta educar a mente. Na verdade, para treinadores e treinadoras, é preciso encontrar outra via, um caminho que não nos prenda nem na razão, nem nos sentidos. Que nos faça pensar, sentir e, principalmente, interagir!
Sobre isso, falamos em breve.

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