Sobre o preço da imortalidade

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Andy Murray, um dos maiores atletas britânicos da história, segurando o trofeu de Wimbledon, em 2016. (Foto: Diário AS)

 
Há duas semanas, o mundo do esporte – do tênis, em particular – amanheceu entristecido tão logo Andy Murray, apenas 31 anos, anunciou sua aposentadoria do esporte profissional. Murray pretende retirar-se em Wimbledon, onde escreveu linda história como o primeiro britânico a vencer em casa em 77 anos, mas na entrevista coletiva em que anunciou sua retirada, deu a entender que não sabe se terá condições de suportar até lá as terríveis dores no quadril que o perseguem há alguns anos.
Peço licença aos leitores e leitoras para iniciar a conversa pelo tênis. Como os mais próximos sabem, além de praticante atualmente esporádico, sou grandíssimo admirador da modalidade. Filho da geração que cresceu assistindo Gustavo Kuerten (também vencido pelo quadril, diga-se), me apaixonei pela multiplicidade do jogo, pela sintonia tão fina e pelos gestos tão bonitos – na minha modesta opinião, é no tênis que reside o mais belo gesto humano de todas as modalidades esportivas: o backhand de uma mão. Quem já praticou, por diversão ou mais seriamente, sabe o quanto o tênis pode ser uma modalidade prazerosa e desafiadora de se jogar, ao mesmo tempo em que terrivelmente cruel para o corpo e para a mente – o que torna ainda mais elogiável o nível e os feitos dos atletas de rendimento. Murray, é importante lembrar, tornou-se número um do mundo na mesma geração de Roger Federer, Rafael Nadal e Novak Djokovic, três dos maiores adversários que qualquer atleta profissional poderia encontrar.
Quando Murray chegou ao topo do ranking, em 2016, viralizou este vídeo, que ilustrava parte do sacrifício oculto naquela conquista. Ao contrário de Federer, a quem se atribui uma espécie de talento raro, e de Nadal e Djokovic, que já haviam acumulado longas semanas como melhores do mundo, Murray talvez convivesse com a necessidade de fazer esforços ainda maiores, de superar-se obsessivamente a si mesmo para, talvez assim, superar os colegas sobrehumanos. No game que definiu seu primeiro título de Wimbledon, em 2013, Murray tinha grandes dificuldades para confirmar o serviço que lhe faria campeão. No vídeo que você pode assistir aqui, aos 20:40, o narrador aproveita o intervalo entre dois pontos para fazer uma observação absolutamente perspicaz, que cito abaixo, em tradução livre:
“A imortalidade no esporte não chega com facilidade…”
Para além de poética, é uma frase absolutamente precisa, não? Talvez ainda mais se pensarmos nas novas gerações – nas quais eu me incluo – de treinadores, atletas e profissionais do futebol em geral, talvez um pouco inebriadas pelos exemplos de sucesso (entre aspas) que nos cercam e ligeiramente distantes dos inúmeros casos de colegas que passam despercebidos, ainda que profundamente talentosos e trabalhadores. Nas nossas profissões, como já observamos anteriormente, não há problema algum em reconhecer que existe uma face autocentrada, um capricho do ego (não no sentido freudiano) que nos motiva a fazer o que fazemos. E talvez um dos nossos desejos, ainda que ocultos, seja exatamente alcançar a imortalidade citada pelo nosso colega narrador. O futebol, afinal, é um dos caminhos para tal: por ele é possível dissolver barreiras espaço-temporais, morar nas memórias e no coração dos outros, ainda que não como atletas. Isso, afinal, parece ser razoavelmente agradável.
Neste bom artigo da New Yorker, sobre a arte das tomadas de decisão, Joshua Rothman faz uma provocação interessante: há uma diferença importante entre querer alguma coisa e querer querer alguma coisa. Por diversas vezes, embora afirmemos o contrário, talvez nós apenas queiramos querer, e não exatamente queiramos algo, de fato. A barreira que separa uma coisa da outra pode estar exatamente naquele vídeo, dos treinamentos de Murray: até que ponto nós estamos dispostos a suportar a dor? Até onde toleramos a rejeição e o autossacrifício? Como treinadores e treinadoras, por exemplo, não nos é exigido um esforço análogo ao dos nossos melhores atletas, uma espécie de ascetismo, ainda que expresso por uma outra via? Será que estamos maduros para as privações, os custos e o preço de um sonho?
Ainda que digamos que sim, é preciso caminhar com esmero. Os gregos nos trouxeram os riscos dos sonhos elevados pela fábula de Ìcaro e Dédalo: ainda que nos sejam dadas asas, não podemos voar tão próximos do Sol. Se o fizermos, nos será exigida uma força moral e física enorme, grande como aquela que Murray parece fazer, todos os dias, para simplesmente ter uma ‘qualidade de vida melhor’. Se você preferir, outros exemplos não faltam: Pep Guardiola, faz poucos dias, disse ‘não ter amigos’, Marcelo Bielsa é simultaneamente tido como gênio e obsessivo, Mourinho já disse odiar sua vida social. Para voos altos, afinal, as quedas também podem ser dolorosas.
O que, repare bem, não nos impede de voar.
 

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