Sobre o treinador que pensa por si

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Telê Santana: um exemplo tácito do pensar por si? (Imagem: goal.com)

 
Poucas qualidades são mais saudáveis, para treinadores e treinadoras, do que a capacidade de pensar por si. Não apenas porque os outros já existem, como nos lembrou Oscar Wilde, mas porque o jogo é tão plural, um emaranhado de tamanhas possibilidades, que há espaço para as mais diversas formas de pensar, as mais diversas estratégias e modelos, especialmente se elas forem frutos do processo de afirmação de quem as constrói, se forem um parto de ideias.
Reparem, leitores e leitoras, que vivemos em um tempo de abundância informacional como jamais se viu anteriormente. Treinadoras e treinadores acessam, em um mero toque no smartphone, os mais elaborados relatórios e estatísticas, jogos dos mais diversos campeonatos mundo afora (em tempo real!), aforismos ou análises dos mais diferentes formadores de opinião, brasileiros ou não. As conexões virtuais estão mais afirmadas do que nunca e isso, a priori, seria motivo de regozijo e satisfação, pois estaríamos munidos com aquilo que talvez tenha sido o sonho de muitos dos nossos antepassados profissionais.
Mas, ao mesmo tempo, em que medida o excesso informacional compromete nossa real capacidade de reflexão? Me lembro de uma brilhante crítica de Arthur Schopenhauer (que indico desde já), no seu A Arte de Escrever, quando ele observa que um dos malefícios da leitura compulsiva é que ela, ao longo do tempo, pode afrouxar os músculos mais críticos do leitor, de modo que ele, sem perceber, perca a capacidade de pensar por si. Afinal, quando lemos, visitamos uma outra pessoa, pensamos pelo pensamento dela e, mais tarde, devemos retornar à nossa própria visitação, quando interrompemos a leitura e refletimos, fazemos nossas ponderações, digerimos as palavras do outro como se digere um alimento qualquer. Mas, se lermos sem parar, como poderíamos refletir?
O mesmo raciocínio me parece aplicável à formação de profissionais do futebol, nos mais diversos contextos. É bem verdade que nossa realidade parece outra, na medida em que, infelizmente, nosso tempo dedicado à leitura está cada vez menor – seja no futebol ou fora dele. Mas, ao mesmo tempo, a imagem de Schopenhauer me parece presente, à sua forma. Quando nos entregamos em tamanhos jogos, em tantas entrevistas e modelos de jogo, especialmente não-brasileiros, me parece que corremos um risco bastante razoável, às vezes imperceptível, de um afogamento ideológico. Quando mergulhamos inadvertidamente nas ideias alheias, sem submetê-las ao nosso próprio julgamento, estamos, ao meu ver, cometendo uma razoável violência conosco, com nossa história, nossos valores. Assim como voltamos às nossas residências após visitar uma pessoa querida, não me parece razoável morarmos nas ideias alheias, em detrimento das nossas próprias. É preciso pensar por nós mesmos, amigos e amigas.
Talvez aqui esteja um dos motivos importantes porque, inacreditavelmente, ainda não sejamos treinadores e treinadoras cobiçados pelos europeus. Veja bem, não defendo que sejamos espectadores passivos da agenda futebolística europeia (o que me parece absolutamente pernicioso), mas algo parece desafinado quando nossos atletas despertam tamanho interesse e nós, treinadores, não. É muito provável que os atletas sejam tão visados porque ainda carregam consigo, apesar dos novos tempos, uma herança futebolística que não se perde de uma hora para outra, um patrimônio cultural do qual devemos ser absolutamente orgulhosos, pois o futebol brasileiro talvez tenha causado o maior dos incômodos futebolísticos do século passado, com o drible, a finta e a inteligência que pareciam imbatíveis, e que despertaram o desenvolvimento das mais diversas estratégias e metodologias que pudessem nos superar – o que aconteceu. Ainda que implicitamente, havia ali um jogar próprio, autônomo, que nos caracterizava com nação e que, evidentemente, nos fazia únicos.
Me parece que podemos avançar neste sentido quando pensamos na nossa formação como treinadores e treinadoras. Podemos, sem quaisquer dúvidas, elaborar um pensar futebolístico próprio, um idioma que nos caracterize tanto como nação, quanto como indivíduos. Ao meu ver, passamos por uma pequena involução neste sentido, na medida em que estamos excessivamente admirados com o que se produz lá fora e, em alguma medida, afrouxamos ligeiramente alguns dos nossos mais importantes músculos reflexivos, que se veem perdidos quando precisamos transpassar as ideias de outrem para a nossa prática, o nosso contexto. Imaginem vocês, com a riqueza cultural que nos é peculiar, quantas possibilidades ainda temos para o nosso futebol e para o nosso esporte? Quanta originalidade está aqui, adormecida, à espera de um toque de autonomia que nos faça ser não uma mera cópia alheia, mas a mais elaborada versão do nosso pensar e do nosso ser?
Há um enorme horizonte pela frente, no futebol e fora dele, e é preciso explorá-lo.
Pelos outros e por nós mesmos.

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