Sobre a (pretensa) subtração da tática

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Zdenek Zeman: soluções ofensivas, no geral, talvez passem longe do conservadorismo. (Reprodução: Calcioline)

 
Em recente coluna do ótimo Carlos Eduardo Mansur, vejo um olhar bastante interessante sobre a direção dos nossos debates nas últimas semanas. Em linhas gerais, criou-se aqui e ali uma espécie de aversão à ‘tática’, como se a ‘tática’ (quando entendida de uma forma bastante particular) fosse a responsável por alguns dos supostos fracassos recentes do futebol brasileiro.
Na verdade, essa crítica não foi exatamente criada– já existia e estava adormecida. Como dizem Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, no ótimo ‘Como as democracias morrem’, a história não exatamente se repete, a história rima. Este tempo (não apenas no futebol) é tempo de rimas, e para sobrevivermos é preciso criarmos outras, melhores. A ciência, portanto, não basta: é preciso poesia também.
Neste texto, gostaria de puxar uma conversa sobre dois temas centrais: a diferença entre tática e esquemas táticos e como isso se associa à reflexão que fizemos na semana passada, sobre a hiperestruturação espacial que se desenha, sutilmente, no futebol brasileiro.

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Grosso modo, o argumento trazido por Mansur (refletindo o que, de fato, tem sido propagado por diversos colegas) dá conta de que a suposta ‘morte’ do futebol brasileiro se dá por um ‘excesso de tática’. A solução, bastante simples, seria que houvesse ‘menos tática’. Por esse raciocínio, a impressão é de que o jogo é uma equação matemática (portanto, causal) na qual a adição e/ou subtração de coisas seriam necessárias ao preciso resultado final. Neste momento histórico, seria preciso um sinal de menos, seria preciso subtrair algumas unidades da tática. Bom, este argumento me gera um sentimento duplo. Direi abaixo o porquê.
Por um lado, ouvir que é preciso ‘menos tática’ me deixa ligeiramente assustado, não exatamente pela subtração, mas pelo ideal de tática que o precede. Este é um ponto importante: no último final de semana, respondendo ao amigo Bruno Madrid, do BOL, ressaltei o quão importante é refletir sobre o significado médio que damos à tática. Para alguns colegas, a ‘tática’ é vista como um fenômeno menor, secundário, que se materializa basicamente a partir dos esquemas ou sistemas  táticos. Aqui, tática seria sinônimo de 4-4-2, 4-3-3 e adjacentes (sinto, na verdade, que a aversão maior é à linguagem, não à ‘tática’ em si). Por sua vez, há quem veja a tática como um fenômeno maior, prioritário, como uma nascente, por onde afluem todos os problemas do jogo. Aqui, não é possível adicionar ou subtrair, porque o jogo não é mais/menos: o jogo é tático. É por ela que o jogo se manifesta.
Pelo primeiro argumento, o excesso de ‘tática’ seria responsável por uma suposta pobreza ou esterilidade do futebol brasileiro. Para resolvê-la, então, o que fazemos? Fazemos ‘menos tática’, nos preocupamos menos com os esquemas (com as estruturas, se você preferir), damos mais atenção ao jogo jogado ou mesmo ao talento, revivendo uma suposta ‘essência’ do futebol brasileiro (que acaba sendo altamente questionável). O problema deste argumento é que começa bem, mas termina mal. De fato, desconfio que nosso ideário futebolístico, especialmente do ponto de vista tático, está se tornando demasiado sólido, rígido, às vezes inflexível (ainda que se diga o contrário), e seus reflexos estão cada vez mais claros no jogo jogado: parte-se, cada vez mais, de uma inquestionável ‘ordem’, confrontando-se a fluidez e a liberdade que estão vinculadas à natureza do jogo (é do caos que nasce a ordem!), de modo com que esteja mais difícil superar as estruturas fixas e as defesas cada vez mais estruturadas que se criam não apenas no futebol, como nas modalidades coletivas de invasão, como um todo.
Só que fluidez não significa, em hipótese alguma, ‘menos tática’. Porque a tática não se resume aos esquemas/sistemas, ela está acima deles. Pense comigo: o jogo de futebol tem uma lógica própria, um logos. Este logos arrasta consigo um telos, um objetivo. Qual é o objetivo do jogo de futebol? Fazer com que um objeto esférico, que desliza pelo campo, entre na meta adversária. Para chegar a ele, temos de resolver os problemas do logos– que se expressam, justamente, pela tática! Neste sentido, me agrada pensar que os esquemas estariam para a tática assim como os galhos estão para uma árvore – em uma grande floresta, o jogo. Os esquemas são derivações, pequenas expressões de onde está contida a tática, mas que, sozinhos, não são a tática, de fato. Basicamente, o que nossos colegas estão dizendo é que a árvore brasileira, que já não seria tão frondosa como fora um dia, tenha seu problema nos galhos. E qual a nossa solução? Que a árvore seja ‘menos árvore’. Não, não é disso que se trata.
Se você preferir, pedir ‘menos tática’ é como pedir que a água, quando líquida, esteja menos molhada. Não, isso não é possível. O que acho que fazemos, sob o argumento da ‘modernidade’, é mudar o estado físico da água, deixando-a em pequenas pedrinhas de gelo, metodicamente dispostas e visíveis, em formas grandes ou pequenas. Mas, no jogo, tudo o que é sólido desmancha no ar. É disso que se trata a crítica que fiz na semana passada: defendo que os processos formativos e o rendimento reflitam nosso jogo, nomeadamente no ataque, não está ultraguiado pelos ideais de ‘ordem’, deslocando a balança para um extremo perigoso, que ignora a fugacidade e o movimento inerentes ao jogo e à vida. Para isso, para criar ‘ordens’, precisamos compreender o caos (ao invés de negá-lo) e dançar com ele, inclusive do ponto de vista metodólogico.
Continuamos essa conversa em breve.
 

 

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