Sobre a qualidade do jogo: uma introdução

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Treinamento do Real Betis, em Sevilla: há qualidade longe do bom treino? (Divulgação: Real Betis)

 
Muito se fala, tanto em tempos remotos quanto recentes, sobre a qualidade do jogo praticado no Brasil. Aqui, adianto que não pretendo ser repetitivo, e que estas linhas serão apenas introdutórias. Ao mesmo tempo, não me parece que o tema esteja saturado e imagino que seja nossa responsabilidade, como profissionais do futebol, sustentar este debate com firmeza.
Nas últimas semanas, o tema foi novamente trazido pelo colega Adílson Batista. Adílson atribui parte significativa do suposto mau jogo praticado no Brasil ao calendário selvagem (adjetivo meu) aqui praticado. Em linhas gerais, ele me parece absolutamente correto, embora devamos avançar no tema. Apenas a título de ilustração, a equipe brasileira que mais jogos disputou no último ano foi o Flamengo: 83 partidas oficiais entre Campeonato Carioca, Copa do Brasil, Libertadores, Copa Sul-Americana, Copa da Primeira Liga (!) e Campeonato Brasileiro. Para efeitos de comparação, o Real Madrid, uma vez mais campeão da UEFA Champions League, fechou a última temporada com meros 58 jogos oficiais (números não-oficiais). A diferença é simplesmente obscena e, cá entre nós, sabemos a sua origem. Por ora, não nos debruçaremos aqui.
No ano passado, esta mesma Universidade do Futebol pontuou um importante debate sobre a qualidade do jogo no Brasil. O documento está aqui: diversos profissionais enviaram suas ideias sobre aquilo que consideram como qualidade de jogo. São inúmeras as definições e indico que leitores e leitoras saboreiem o conteúdo, com calma. Aqui, gostaria que nos atentássemos para uma das ideias, não apenas eficiente como bela, colocada pelo professor João Batista Freire. Faço um pequeno recorte:

“O termo “qualidade do jogo”, por si só, não define absolutamente nada.
Para dar sentido a esse termo, temos que agregá-lo a contextos. O jogo de futebol é um jogo coletivo. Por mais que integre uma equipe jogadores excepcionalmente habilidosos nos fundamentos do futebol, esses jogadores precisam colocar suas habilidades individuais à disposição do coletivo.

(…) Há algo que vai além das obrigações contratuais no jogo de futebol. Voltando à questão da qualidade do jogo, a imprevisibilidade, o risco, a graça do jogo é aquilo que poucos dominam. Quais técnicos de futebol chegam a discutir
essa questão? Pois deveriam, porque os que a dominarem, os que souberem entender melhor esse ponto, que é o fundamental em todo jogo, poderão saber como melhor orientar suas equipes. Esse é o ponto, em meu entender, que mais daria qualidade de bom jogo ao futebol”.

 
Não é preciso que nos debrucemos sobre Hobbes ou Rousseau para imaginar que, no jogo, também existe um contrato – contrato este que igualmente não se assina, mas está firmado. O problema é que cumpri-lo, na sua frieza, não basta. Um dos motivos por que a qualidade do jogo brasileiro tem sido severamente questionada me parece morar no objetivismo a que nos submetemos, como se o jogo fosse formado por uma série de checklists, de objetivos a serem cumpridos que, linearmente, levariam treinadores e treinadoras ao mais absoluto sucesso. Como se treinadores estivessem para o jogo como alguns chefs estão para a cozinha, bastando apenas elencar os ingredientes dentro de um menu previamente estabelecido e, em uma boa cuisine, montada por alguém, seguir cada um dos passos para, voilá, despertar o paladar daqueles que saboreiam (ou desejam saborear) o jogo.
O problema é que a qualidade do jogo, como o próprio termo revela, não é uma mensurável objetiva. Rubem Alves (que deveria ser lido pela crônica esportiva, diga-se) já havia nos alertado para a distância entre saberes e sabores e para a prevalência dos últimos, pois são eles que matam a fome da alma. No jogo se sucede o mesmo, e a qualidade em nada será maior se, ao invés de buscarmos os sabores, ficarmos apenas nos saberes, no contrato, pois não é disso que se trata o jogo. Ainda no campo da arte, os versos de Cartola são perfeitamente aplicáveis aqui, e o jogo, se entendido como mero cumprimento de um contrato implicitamente estabelecido, também será um moinho, capaz de triturar mesmo os mais diligentes e estudiosos, se estes não estiverem dispostos a saborear, a sentir o jogo. E isso, aliás, significa olhar para dentro.
A cozinha onde se faz o jogo a ser saboreado é, como já sabemos, o treino. É contraditório esperar qualidade de jogo se: a) não houver um treino de qualidade; b) não houver tempo para um treino de qualidade. É por isso que a discussão sobre o calendário em nada é uma desculpa ou um adorno. Assim como não nasce uma laranja em uma jabuticabeira, não nasce um bom jogar se não houver onde e como construi-lo. Aqui, me parece um equívoco grosseiro, mesmo para quem usa o futebol em função dos interesses do assim chamado mercado, o acúmulo de tamanhos jogos em tão curto espaço de tempo. O calendário selvagem é um dos pais da (dita) má qualidade de jogo, das bilheterias e audiências questionáveis, das lesões em profusão, de um sentimento razoavelmente blasé, uma indiferença parcial, que parece crescente no nosso futebol. Para o calendário, no mais alto nível, serve facilmente o adágio que diz que menos é mais.
Mas repare, até nisso conseguimos a proeza de dar mais aos que já têm muito e retirar dos que nada têm. Os clubes grandes se afogam no excesso de jogos enquanto os pequenos definham, apenas sobrevivem. O calendário, poeticamente, também ilustra a desigualdade que mora no coração deste país. A qualidade do jogo, neste olhar, seria vítima de força maior.
A saber. Continuamos em breve.

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