Uma chance para aprofundar o debate

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Ainda é impossível medir com exatidão as consequências e a abrangência do escândalo que chacoalhou o mundo do futebol na última semana – sete dirigentes ligados à Fifa, incluindo o brasileiro José Maria Marin, foram presos na quarta-feira (27) em operação liderada pela polícia federal dos Estados Unidos (FBI). A credibilidade da entidade internacional foi abalada, é claro, mas não impediu a reeleição do presidente Joseph Blatter, apoiado pelo baixo clero do futebol mundial e aclamado pouco mais de 48 horas depois das detenções. Marco Polo del Nero, atual mandatário da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), também foi citado (não nominalmente) na investigação, mas concedeu entrevista coletiva cínica para tentar evitar que os descalabros pespegassem em sua imagem. Entre as denúncias, o trabalho de comunicação para gerir crises e as negativas de todos os lados, o episódio já serve como um excelente exemplo para discutir semântica e responsabilidade.

Vivemos uma era de rótulos, e há vários fatores que contribuem para essa discussão rasa. As redes sociais inseriram mais gente no debate e reduziram o espaço para as ideias, por exemplo, e isso criou um perigoso cenário em que apontar dedos é mais simples do que tentar entender contextos.

Na última sexta-feira (29), mesmo dia em que Blatter foi reeleito e Del Nero negou qualquer envolvimento com os esquemas, um episódio em São Paulo mostrou o quanto a sociedade brasileira atual tem sofrido uma crise de ideias e valores. Protesto realizado na Universidade de São Paulo (USP) acabou com cinco manifestantes feridos, um deles detido. Uma garota levou UM SOCO NO ROSTO de um POLICIAL MILITAR, oficial que em tese vive para proteger os cidadãos.

Instantes antes, o mesmo policial disparou spray de pimenta na jovem e em outra manifestante. Tudo que elas faziam de extremamente perigoso era mexer na mochila de um jovem que havia sido detido, e a ação foi inteiramente gravada. O oficial não tentou conversar ou controlar a situação em momento algum.

O caso de abuso é apenas um exemplo da falência da PM como instituição. O modelo militarizado e opressor simplesmente não condiz com a sociedade moderna. Não cabe e não pode ser admitido. E aqui não interessa se ela começou, agrediu, incitou ou provocou – nem foi o caso, mas esses são os primeiros argumentos usados por qualquer defensor da Corporação. Os policiais trabalham para a sociedade e não para combater a sociedade. Essa violência – como tantas outras, aliás – é simplesmente inaceitável.

A digressão e a relação com o exemplo do PM serviram apenas para mostrar que temos vivido uma crise de ideias. Nosso padrão de debate tem sido cada vez mais o que se viu no vídeo do protesto da USP: violência, confronto, excesso de força e poucas palavras.

O risco que se corre, nesse caso, é perder a razão. Ainda que a manifestante estivesse errada, o policial acabou com qualquer chance de discussão ao partir para a agressão. Ainda que ela tivesse feito isso antes, NÓS NÃO PODEMOS ADMITIR UMA SOCIEDADE DE OLHO POR OLHO.

Por tudo isso, é fundamental ter cautela quando acontece um escândalo de proporções tão grandes quanto o da Fifa. Como escreveu o jornalista Juca Kfouri, o benefício da dúvida a Del Nero só pode ser má fé ou ingenuidade. No entanto, não se pode confundir a convicção com base jurídica.

Enquanto houver uma investigação em curso, suspeitos são apenas suspeitos. Sobre isso, costumo citar sempre o filme “12 homens e uma sentença”, obra de tribunal dirigida por Sidney Lumet em 1957. Sem qualquer comparação com o caso atual, aquele é baseado em um júri de assassinato: todos os indícios levam à condenação do réu, mas um dos jurados começa a desconstruir os argumentos até incutir a dúvida na cabeça de todos.

Nesse caso, portanto, não se trata de ingenuidade, promiscuidade ou pusilanimidade: os fatos são suficientemente fortes para que sejam apurados e causem impacto nos alicerces do futebol mundial. Transformar isso em rótulos rasos só faz mal para o debate.

O futebol mundial tem atualmente uma oportunidade rara para criar uma discussão ampla, que inclua diferentes segmentos e que contribua para a evolução do jogo como evento social. Para isso, porém, é fundamental que o debate supere os rótulos ou a gritaria.

Marin foi preso, e Del Nero ainda deve sofrer consequências. Apontar dedos, porém, vai apenas mudar as moscas. Como disse o Ulisses Guimarães, em frase relembrada pelo jornalista Luis Augusto Simon, “não existe vácuo de poder”. Derrube os atuais comandantes do futebol e mantenha as estruturas intactas, e os problemas vão persistir.

É claro que achar culpados é relevante. É claro que necessitamos de um trabalho de investigação que seja minucioso e que indique as pessoas que se beneficiaram ilegalmente de um jogo que é paixão global. Contudo, o que está em jogo é a cultura de todo o esporte, e nesse cenário os nomes importam menos do que a discussão.

Como segmento, o futebol precisa de auditoria. Ainda que instituições como a CBF e a Fifa sejam privadas, elas são foco de interesse público. Por isso, devem prestar contas à sociedade – e não apenas no aspecto financeiro. Saber quanto essas entidades ganham e como elas gastam esses recursos é relevante, mas aqui a palavra “auditoria” é mais abrangente: é preciso saber por que elas tomam determinadas decisões e como elas usam a influência que o esporte oferece.

Pela abrangência que tem e pelas paixões que desperta, o futebol é um agente social com enorme potencial de formação e transformação. Até por isso, é fundamental que criemos ambientes em que o segmento seja discutido – esses debates não podem ficar restritos ao ambiente acadêmico ou às pessoas que fazem parte do segmento.

Como em qualquer crise, o futebol tem agora uma chance de autoanálise, e isso tem de ser muito maior do que apenas algumas prisões. Resta saber se as pessoas que comandam a modalidade terão maturidade para enxergar numa crise de imagem uma chance de reinvenção. Sem rótulos e com profundidade.

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