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“É preciso ter o futebol no sangue, e a gente, neste momento, não duvida de que qualquer laboratório detectaria a sua presença nas veias de cada brasileiro, numa mistura balanceada com glóbulos brancos e vermelhos” (Mino Carta – em editorial da Revista Isto É – nº 212 – jan/81)

 

Há quase dez anos, perguntávamos em um artigo (“O Fenômeno cultural chamado futebol – uma proposta de Estudo”):

 

… Que segredo é esse do futebol que faz com que 130 milhões de brasileiros – uns vítimas da seca do Nordeste, outros das enchentes do Sul, a maioria vítima de um sistema que deles suga toda a vontade de resistir-, de repente, como que tocados por uma varinha mágica, por um feitiço coletivo, permanecem durante noventa minutos presos à magia de 22 homens (ou deuses?) dentro de um campo de futebol? Que encantamento é esse do futebol que faz surgir de todas as esquinas do país, das palafitas cobertas de folhas de babaçu às suntuosas residências dos coronéis, a mesma emoção, o mesmo sofrimento, a mesma alegria contagiante no instante do gol, como se aquele momento supremo do jogo de bola fosse capaz de anular as diferenças sociais? Que mistério é esse do futebol que faz surgir do orçamento deficitário do povo uma inesperada reserva para o deslocamento até os grandes estádios (…), para a compra de rojões, panos e tintas para as faixas visando a saudação de seus ídolos e para a leitura de toda a gama de jornais e revistas, especializadas ou não, pois todas reportam-se a ele, futebol? Que fenômeno é esse do futebol, capaz de viabilizar a união de todos (ainda que circunstancial e provisoriamente) em torno de um ideal comum – como por ocasião dos Campeonatos Mundiais -, aproximando os extremos e congraçando todas as correntes de pensamento, união esta por demais tentada e poucas vezes alcançada em outros momentos da vida nacional?

 

(…) Serão as respostas a essas perguntas a demonstração de estar no futebol uma espécie de reafirmação do espírito brasileiro, de sublimação dos seus problemas, da sua capacidade de luta e de seu desejo de marcar a sua posição no cenário internacional? Quais serão seus verdadeiros valores? O que faz despertar tantas paixões? Qual a razão de sua tamanha identificação com o brasileiro?…

 

De lá para cá assistimos, ao lado das preocupações com a evolução técnica e tática do jogo de bola, um crescer de reflexões e debates nos quais ele, futebol, é reconhecido como uma das práticas sociais mais significativas do mundo contemporâneo e, em nosso país, identificador da nossa cultura corporal esportiva.

 

Quantos de nós não tivemos, em nosso nascimento, um par de chuteirinhas penduradas orgulhosamente por nossos pais ou avós nas portas dos nossos quartos? Somente neste ano de 1994 – ano de Copa do Mundo – passa de uma dezena os lançamentos de livros retratando o futebol em suas mais distintas facetas, nenhum deles, entretanto, com a propriedade de Mario Filho, no clássico de 1947, O negro no foot-ball brasileiro, reconhecido por Gilberto Freire, que o prefacia, como um verdadeiro tratado antropológico da sociedade brasileira.

 

Pois é neste clima de festa e euforia que milhões de brasileiros – crianças em particular – sonham, um dia, vestir a camisa da seleção de seu país ou, mais modestamente – porém não muito – de um dos grandes clubes estrangeiros ou – vá lá – aqui da “terrinha” mesmo. Afinal de contas, já se acostumaram a acompanhar, pela mídia, notícias dos milionários (em dólares, é claro) contratos dos astros esportivos, que lhes permitem ostentar um padrão de vida invejado pela maioria da população que, como a Maria cantada por Milton Nascimento, não vive, apenas agüenta.

 

Como contraponto, portanto, ao clima festivo mencionado, como também a esse processo de ideologização sustentador do mito da ascensão social através do esporte, vale a pena nos reportarmos a alguns dados fornecidos pela Confederação Brasileira de Futebol, publicados pela Folha de São Paulo, em 19 de janeiro último, alusivos à remuneração do atleta de futebol profissional – os trabalhadores da bola – no ano de 1993.

 

Conforme as informações fornecidas pela CBF, 19,25% deles ficaram na faixa dos que receberam valores correspondentes a 1 salário mínimo; 51,38% – de 1 a 2; 19,60% – 2 a 5; 6,77% – de 5 a 10. Apenas 3% do total de jogadores receberam salários acima de 10 salários mínimos. Resumindo: 90,23% dos trabalhadores da bola obtiveram uma remuneração mensal da ordem de 1 a 5 salários; 70,63% deles receberam, por mês, de 1 a 2 salários.

 

Por fim, por conta das normas que regem as relações trabalhistas dos atlet
as profissionais de futebol – ratificadas pela Lei Zico (L. 8672/93), que veio em nome da modernização do esporte no Brasil-, mais correto seria nos referirmos a eles como escravos da bola, pois talvez sejam, hoje em dia, dos últimos trabalhadores a não possuir a propriedade de sua força de trabalho, a qual, motivada pela famigerada  Lei do Passe, fica quase sempre nas mãos dos clubes ou, mais apropriadamente, nas dos empresários (gatos?) do esporte. Aí está algo que um Governo Popular e Democrático não pode deixar de combater. Por isso, vamos ao trabalho e… salve a seleção, que ninguém é de ferro!

Para interagir com o autor: lino@universidadedofutebol.com.br

*Lino Castellani Filho é Doutor em Educação, docente da Faculdade de Educação Física/Unicamp, pesquisador-líder do “Observatório do Esporte” – Observatório de Políticas de Educação Física, Esporte e Lazer – CNPq/Unicamp, e foi Presidente do CBCE (1999/2003) e Secretário Nacional de Desenvolvimento do Esporte e do Lazer/Ministério do Esporte (2003/06)


 

[1] Publicado no Jornal Brasil Agora, editado pelo Partido dos Trabalhadores, em sua edição de nº 61 (ano II), de 05 a 20 de julho de 1994.

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