O Estatuto do Torcedor, com o passar dos anos, pode ser considerado um marco na gestão do futebol brasileiro como negócio. Desde 2003, quando ele foi aprovado como lei, que o torcedor é tratado como uma espécie de consumidor dentro de um estádio de futebol.
A situação ainda está muito distante do mundo ideal, mas já é muito melhor do que há dez anos, quando torcedor era confundido com animal pronto para o abate. Hoje já se percebe que o clube entende que o torcedor deve ser tratado como uma pessoa importante dentro da cadeia produtiva da bola, e muito disso deve-se a algumas mudanças provocadas pela lei.
Só que ainda há uma grande lacuna nessa legislação, que passou despercebida quando da sua criação (durante o ano de 2002) e agora, em alguns outros ajustes que a lei sofreu.
Continua-se a deixar, no Brasil, a polícia militar como responsável pela segurança do evento.
A partida entre Ceará e Santos mostrou, mais uma vez, o quão despreparada é a polícia que “cuida” da ordem num evento esportivo no Brasil. A cacetada que o meia santista Marquinhos levou, apenas por estar próximo a uma discussão que acontecia na saída das duas equipes, revela dois lados cruéis de uma história marcada pela truculência da polícia brasileira.
Para quem não viu a cena, o policial se coloca atrás de Marquinhos, aparentemente para convencê-lo a seguir andando e, com uma mão sobre o ombro do atleta, usa a outra para, sem tirar o cassetete da cintura, almejar as costas do jogador. Depois, tenta sair do bolo, mas é intimado por outro atleta do Santos. Então, é convencido pelos demais policiais a descer para o vestiário, como se não tivesse cometido nenhum delito.
Num país em que a lei serve para dar poder a um e tirar o de outro, e não para que todos vivam em harmonia, é inadmissível que continuamos a ter policiais despreparados tomando conta da segurança de uma partida de futebol, ou de qualquer outro evento.
Quando o episódio envolve um torcedor, rapidamente a opinião pública vira-se a favor do policial, considerando-o vítima de uma bandidagem maior, a do violento torcedor agindo em bando. O caso de Marquinhos mostra quão desvirtuada é essa impressão.
O Estatuto do Torcedor tem sua gênese no Taylor Report, criado no início dos anos 90 na Inglaterra. Lá, a mudança de tratamento com o torcedor se deu também pela criação de leis mais severas (como por aqui), mas um dos grandes saltos de qualidade para que absurdos envolvendo a polícia nos estádios como ainda acontecem no Brasil foi a adoção de um treinamento especial de policiais que trabalham especificamente em estádios de futebol.
Hoje, os policiais do futebol na Inglaterra entendem que não se trata multidão com cacetadas, e muito menos time de futebol. Policial, aliás, só entra em campo se houver necessidade. No Brasil, o clube de futebol perde, e muito, deixando para a polícia a segurança dentro de um estádio de futebol. Não há competência dos policiais em gerenciar crises envolvendo torcedores e, como ficou evidente neste domingo, até mesmo com atletas.
Enquanto a regra for bater primeiro para depois tentar descobrir se há mesmo problema, de nada adiantará exigir mais do torcedor e do clube. A combinação entre polícia e futebol é ainda muito perigosa. Especialmente para o negócio futebol.
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