Entre para nossa lista e receba conteúdos exclusivos e com prioridade
Entre para nossa lista e receba conteúdos exclusivos e com prioridade

Fico imaginando o motivo. Talvez a proximidade do final do Campeonato Brasileiro esteja na base do acirramento das manifestações de fé, tanto dos jogadores como dos torcedores. Afinal, uma ajudazinha divina nesta fase do campeonato seria muito bem-vinda…

Ou então a simples compreensão de que Deus é brasileiro e, sendo, natural que esteja atento aos acontecimentos futebolísticos tupiniquins… Daí a entender que também Ele tem preferência por um determinado time – o meu, o seu, o nosso – é um pulinho…

Se buscarmos uma explicação tão mais complexa quanto mais distante dos apaixonados esportistas, talvez encontremos na Indústria do Entretenimento de Adorno ou na Sociedade do Espetáculo de Debbord as explicações procuradas…

Aí, então, resolvi escrever sobre o assunto, mas da decisão de fazê-lo à sua materialização dei conta de meu desconhecimento do tema. E se não bastasse esse arranhão na minha auto-estima, me vi diante de crônicas escritas neste milênio que adoraria ter escrito…

Só me restou a sensatez de reproduzi-las neste espaço…

Lendo-as, vocês verão quão atuais elas soam, e se ajudarem a recolocar o imbróglio em pauta, terá valido a pena…

Começo com uma escrita por Eugenio Bucci, no início deste século XXI, publicada na Folha de São Paulo em 07 de julho de 2002. Sigo com ele mesmo, 15 dias depois (21 de julho), tecendo comentários sobre a repercussão dela junto aos leitores daquele diário…

Em seguida, salto sete anos no tempo e lhes apresento duas outras – a segunda, do mesmo jeito que a do Bucci, falando da repercussão da primeira – de Juca Kfouri, publicadas respectivamente em 30 de julho e 02 de agosto de 2009.

Fiquem com elas e digam se me enganei em meu juízo acerca da atualidade da reflexão…

————-

I belong to… pelo amor de Deus!

EUGÊNIO BUCCI

“CREDO EM cruz! Ao final daquela partida lá, aquela tal de domingo passado em que o Brasil se sagrou campeão depois de ganhar da Alemanha, uns jogadores arrancaram a camiseta oficial da seleção brasileira e, por baixo, tinham outra. Sim, vestiam outra camisa por baixo da camisa que vestiam. E essa outra camisa era merchandising religioso. Uma delas trazia a seguinte mensagem: “I belong to Jesus”. Oh, God. Eu me lembrei de Ella Fitzgerald cantando “my heart belongs to daddy”, da música de Cole Porter, e senti que a voz da cantora era mais angelical. Um segundo futebolista, este mais alto, preferiu outros dizeres: “Jesus (coraçãozinho) you”. Incredible! Qu’é qu’é isso, Cafuringa? Nos rescaldos da final de campeonato, a tela da Globo se converteu, de súbito, numa incomensurável tela da Rede Record. Aquilo virou um megaculto da Igreja Universal.

Há quem tenha visto espontaneidade na comemoração dos canarinhos. “É o jeito brasileiro”, diziam os animadores esportivos de sempre. O que é exatamente o “jeito brasileiro”? Dizem que é o “improviso”, a “descontração”, a “alegria” que “éééééé…. duBrasil!” Tocaram lá a musiquinha que fazia fundo para as vitórias de Ayrton Senna na Fórmula 1. Tentaram esconder a figura insistente de Ricardo Teixeira, o dono da taça, enquanto o pessoal chorava. Tentaram em vão. Teixeira acabou dando entrevista em destaque e tudo virou um grande carnaval sem culpados. Vai ver que isso tudo junto é o “jeito brasileiro” de ser, mas há mais no meio da bagunça. Há algo que não tem nada de Brasil e que tem tudo de não-Brasil. Religiões eletrônicas, que se promovem pelos meios de comunicação de massa e que são fábricas do dinheiro de poucos e do gozo das multidões, são um fenômeno da indústria cultural em moldes americanos. São tão brasileiras quanto a Nike. O que aqueles atletas encenaram no meio do gramado não foi uma inocente expressão de fé (coisa que também não tem pátria, graças a Deus), mas uma descarada jogada de marketing. O que se manifestou no episódio não foi o Espírito Santo, mas uma propaganda diabólica.

Nós, brasileiros, já temos de suportar a marca de patrocinadores na camisa que deveria representar apenas uma nação. Já é um desaforo. Agora existe aí a modalidade da propaganda infiltrada. E parcial. Já que isso vale, por que propaganda só de Jesus? Por que não de Xangô? E por que não de Buda? Aqueles atletas que vestiram a camisa do Brasil tendo outra por baixo eram os homens-bomba do simbólico. Não levavam explosivos propriamente ditos, mas, disfarçados de futebolistas brasileiros, esconderam sua verdadeira camisa até o instante final, quando então “explodiram”: eram propaganda contrabandeada. “I belong to Jesus”, ora, por favor. E a gente aqui achando que o sujeito pertencesse ao time do Brasil, que ele representasse o país.

A fusão da religião com a TV é tão antidemocrática quanto a fusão entre Estado e Igreja. Transformado em espetáculo, o discurso religioso ensandece, invade as esferas individuais e ganha tons totalitários. É bem possível que os homens-bomba do simbólico pretendam que esse “Jesus” de suas camisetas seja unânime, total, compacto e que, portanto, jamais possa ser visto como “penetra” na festa de ninguém. Ai de quem for contra “Jesus”, eles proclamam. E pronunciam o nome com força, com tanta força que a palavra soa estranha, soa “Xessôs”, como se fosse nagô. Como se fosse a serenidade se transformando em fúria. O amor em ódio. A fé em fanatismo.

Enquanto isso, pobre de quem acreditava que o Estado fosse laico. Pobre de quem acreditava que a seleção brasileira representasse os brasileiros de todas as religiões. Pobre do torcedor. Esses propagandistas dissimulados. Na próxima Copa, que façam comercial do diabo de uma vez.”

O ateísmo como direito

EUGÊNIO BUCCI

“HÁ DUAS semanas, critiquei os jogadores da seleção que fizeram merchandising religioso logo após a vitória sobre a Alemanha. Argumentei que, ao “desvestirem” o uniforme oficial para revelar outra camiseta, que traziam por baixo, com slogans de uma causa religiosa, eles se aproveitaram da visibilidade pública conquistada pelo time nacional para promover convicções particulares. O que é indevido e invasivo. O Brasil é um Estado laico: nenhuma função de representação do Brasil pode ser apropriada por uma forma de fé. Não é democrático. Mesmo que essa fé congregue 99% da população, não é democrático. A minoria não pode ser excluída nesses momentos de representação nacional. Quando transformaram a festa do pentacampeonato num evento de divulgação de culto qualquer, esses jogadores usurparam a camisa oficial que trajavam. Ato contínuo, excluíram das comemorações os brasileiros que não partilham do mesmo culto.

Como era de esperar, recebi mensagens de protesto. Na verdade, nem foram tantas. Não mais que 30. O que me chamou a atenção foi que 90% delas vinham de leitores verdadeiramente indignados. Eram textos violentos que, em resumo, acusavam-me de preconceituoso. Em respeito aos que me escreveram, aos quais sou grato, em respeito ao conjunto dos leitores e, finalmente, às opções espirituais de cada um, volto ao assunto. O meu objetivo é deixar claro que não é preconceito o que me move. Minha crítica não é contra religião nenhuma: é contra o marketing oportunista de religiões que vem se repetindo na TV.

A fé, todos sabemos, deixou de ser “uma questão de opção de foro íntimo”, como se dizia antigamente, e passou a ser um segmento da indústria cultural. Não se trata de um fenômeno “evangélico” ou “católico” ou “protestante”: as seitas eletrônicas têm raízes nas mais diversas tradições místicas; o que as distingue não é a tradição a que se filiam, mas sua prática discursiva, perfeitamente adaptada ao show de TV. A Rede Record é uma expressão desse fenômeno no Brasil. Padre Marcelo, com as suas especificidades, também é. A fé se tornou uma modalidade do espetáculo, com as va
ntagens e desvantagens de comunicação (sagrada ou profana) que isso acarreta.

As teleigrejas se manifestam (e existem) como propagandas de si mesmas. Para elas, a propaganda não é a alma do negócio: a propaganda é sua razão de ser. É de sua natureza a propensão a ocupar todos campos da visão social. Acreditam que, assim, cumprem seu papel e exercem seu direito. Muitas vezes, porém, invadem o direito de outros e seus fiéis mal se dão conta. Um atleta que se declara diante das câmeras como alguém que “pertence a Jesus” está apenas exercendo o direito de professar sua fé. Mas, quando ele se furta à representação oficial da qual foi incumbido, a de vestir o uniforme da seleção brasileira, num evento oficial, e se aproveita das câmeras para promover um determinado culto, comete um abuso. E exclui, com esse gesto, os outros brasileiros que porventura não comunguem da mesma fé. Mesmo sem querer.

Vivemos uma era de multiplicação de teleigrejas. Deveriam ser tempos mais plurais, mais arejados, mas não são. Ao contrário, são tempos de intolerância. A fé que só existe como espetáculo supõe-se um sentimento total e não admite contestação. A simples idéia de que não há unanimidades nem Maomé, nem Buda, nem mesmo Cristo é entendida como uma hedionda heresia pelas teleigrejas. A mera existência de um ateu se torna uma ofensa. Apenas para efeitos de raciocínio, imagino a seguinte cena: após a vitória do Brasil sobre a Alemanha, um jogador abre um estandarte onde se lê “Viva o ateísmo!”.

Provavelmente seria expulso de campo. E, no entanto, não estaria cometendo uma deselegância pior do que essa que foi cometida pelos propagandistas de Jesus.”


Deixem Jesus em paz

JUCA KFOURI

Está ficando a cada dia mais insuportável o proselitismo religioso que invadiu o futebol brasileiro

“MEU PAI, na primeira vez em que me ouviu dizer que eu era ateu, me disse para mudar o discurso e dizer que eu era agnóstico: “Você não tem cultura para se dizer ateu”, sentenciou.

Confesso que fiquei meio sem entender. Até que, nem faz muito tempo, pude ler “Em que Creem os que Não Creem”, uma troca de cartas entre Umberto Eco e o cardeal Martini, de Milão, livro editado no Brasil pela editora Record.

De fato, o velho tinha razão, motivo pelo qual, ele mesmo, incomparavelmente mais culto, se dissesse agnóstico, embora fosse ateu.

Pois o embate entre Eco e Martini, principalmente pelos argumentos do brilhante cardeal milanês, não é coisa para qualquer um, tamanha a profundidade filosófica e teológica do religioso. Dele entendi, se tanto, uns 10%. E olhe lá.

Eco, não menos brilhante, é mais fácil de entender em seu ateísmo.
Até então, me bastava com o pensador marxista, também italiano, Antonio Gramsci, que evoluiu da clássica visão que tratava a religião como ópio do povo para vê-la inclusive com características revolucionárias, razão pela qual pregava a tolerância, a compreensão, principalmente com o catolicismo.

E negar o papel de resistência e de vanguarda de setores religiosos durante a ditadura brasileira equivaleria a um crime de falso testemunho, o que me levou, à época, a andar próximo da Igreja, sem deixar de fazer pequenas provocações, com todo respeito.

Respeito que preservo, apesar de, e com o perdão por tamanha digressão, me pareça pecado usar o nome em vão de quem nada tem a ver com futebol, coisa que, se bem me lembro de minhas aulas de catecismo, está no segundo mandamento das leis de Deus.

E como o santo nome anda sendo usado em vão por jogadores da seleção brasileira, de Kaká ao capitão Lúcio, passando por pretendentes a ela, como o goleiro Fábio, do Cruzeiro, e chegando aos apenas chatos, como Roberto Brum.

Ninguém, rigorosamente ninguém, mesmo que seja evangélico, protestante, católico, muçulmano, judeu, budista ou o que for, deveria fazer merchan religioso em jogos de futebol nem usar camisetas de propaganda demagógicas e até em inglês, além de repetir ameaças sobre o fogo eterno e baboseiras semelhantes, como as da enlouquecida pastora casada com Kaká, uma mocinha fanática, fundamentalista ou esperta demais para tentar nos convencer que foi Deus quem pôs dinheiro no Real Madrid para contratar seu jovem marido em plena crise mundial. Ora, há limites para tudo.

É um tal de jogador comemorar gol olhando e apontando para o céu como se tivesse alguém lá em cima responsável pela façanha, um despropósito, por exemplo, com os goleiros evangélicos, que deveriam olhar também para o alto e fazer um gesto obsceno a cada gol que levassem de seus irmãos…

Ora bolas!

Que cada um faça o que bem entender de suas crenças nos locais apropriados para tal, mas não queiram impingi-las nossas goelas abaixo, porque fazê-lo é uma invasão inadmissível e irritante.

Não mesmo é à toa que Deus prefere os ateus…”


Jesus é uma farsa!

JUCA KFOURI

Como reagiriam aqueles que defendem o merchan religioso nos gramados se alguém vestisse a camiseta acima?

“IMPRESSIONANTE como muita gente lê o que quer e não o que está escrito.

Fora, é claro, o preocupante analfabetismo funcional e a conhecida demagogia dos que pegam uma caroninha em tudo.

Houve quem visse tentativa do colunista em cercear a liberdade religiosa na coluna passada. Desafia-se aqui quem quer que seja a demonstrar uma vírgula sequer neste sentido.

Reclamou-se, isso sim, da chateação que o proselitismo religioso causa em quem quer apenas ver um jogo de futebol, ao mesmo tempo em que se defendeu que cada um se manifeste como quiser nos locais apropriados.

Houve também quem não se lembrasse de ter lido aqui manifestações contra atletas que fazem propaganda de cerveja.

Para esses só resta indicar memoriol, porque não só são criticados os esportistas que fazem propagandas do gênero como, também, quem usa espaço esportivo para tal, seja ou não jogador.

E não me venha ninguém dizer que os tais atletas de Cristo são bons exemplos neste mundo de pecadores, pois basta olhar para Marcelinho Carioca e ver que as coisas não são bem assim.

E que fique claro que o colunista gosta, muito, de cerveja, assim como inveja os que creem, porque deve ser uma boa muleta para suportar as agruras da vida e para alimentar a esperança da compensação de uma vida eterna.

Posso garantir, no entanto, que nem mesmo nos momentos limites que já vivi apelei a alguma força superior que me salvasse. E não foi para ser intelectualmente coerente.

Mas chega a ser divertido ver um político que tem crescido feito rabo de cavalo, para baixo, conhecido por sua homofobia, sinônimo de preconceito, querer dar lição de moral, como um obscuro ex-deputado federal, hoje apenas vereador, que buscou alguns votinhos adicionais ao entrar na polêmica.

Polêmica que rendeu coisa de 120 mensagens eletrônicas de leitores desta Folha para minha caixa postal, surpreendentemente a favor da coluna, coisa de 80%, embora índice compreensivelmente menor de aprovação do que nos quase 500 comentários no blog.

E aí é motivo de satisfação constatar que só a esmagadora minoria não é capaz de entender a ironia da frase “Deus prefere os ateus”, usada no fecho da coluna.

Aos que pediram que a coluna se limite ao futebol, um aviso: não há nenhuma atividade humana que não possa ser relacionada ao futebol, razão pela qual o espaço seguirá sendo preenchido desse jeito.

Finalmente, uma ponderação óbvia: deixar o campo de futebol para que nele se dispute só o jogo acaba por proteger os fundamentalistas de algum herege que vista uma camiseta com os dizeres do título desta coluna, ali escritos apenas à guisa de provocação.

Já imaginou?

Seria uma delícia ver a reação dos que brandiram até a Constituição, que garante a liberdade religiosa, como se o colunista tivesse agredido seus princípios…”
 

Para interagir com o autor: lino@universidadedofutebol.com.br

Compartilhe

Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp
Share on email
Share on pinterest

Deixe o seu comentário

Deixe uma resposta

Mais conteúdo valioso