O futebol, modalidade desportiva que é, nasce como pedagogia, nos colégios universitários da Inglaterra vitoriana. Portanto, o futebol, antes de tudo o mais, é pedagogia, ou seja, uma instância instauradora e promotora de valores. Quando surge travestido de violência, as causas localizam-se principalmente, no grau de instabilidade social, na degradação econômica e em muitos capitalistas e dirigentes, que o comandam.
Aliás, o paradoxo e a debilidade do desporto reside no facto de ele supor, em todos os cidadãos, virtudes que não se encontram senão em alguns. A violência do hooliganismo e das claques, um clubismo ou regionalismo facciosos, a guerrilha verbal dos opinadores, dos críticos e até de “respeitados” dirigentes, a corrupção que, de quando em vez , se conhece – não podem confundir-se com o futebol. O mesmo diríamos das estratégias de manipulação de alguns caciques, criando cisões nefastas entre as pessoas e as instituições.
É verdade que já escrevi que o desporto altamente competitivo reproduz e multiplica as taras da sociedade. Mas, não deixei de acrescentar que ele também tem condições únicas, para transformar-se em contra-poder ao poder das taras dominantes. Há uma mística de solidariedade, de espírito de grupo, na prática desportiva, que me parece um processo eficaz de operar a higiene mental das pessoas atolhadas de mitos, dogmas e falsas ideias, propugmados pelos poderes que nos governam. Continua válido o reparo de Montesquieu: apenas o poder limita o poder. O silêncio, o segredo, a expectativa dão mais força à demagogia, ao arrivismo, a ilusões artificiosas.
O sociólogo brasileiro Maurício Murad, no livro a violência e o futebol (editora FGV, Rio de Janeiro, 2007, pp. 39 ss.) relembra algumas das experiências bem sucedidas, em diversas partes do mundo, de uma prática desportiva que se transforma em generosa pedagogia social: o basquete da meia-noite, nos EUA, com equipas de “menores abandonados”; a Vila Olímpica da Mangueira, no Rio de Janeiro, que vem libertando do vício e do crime um número incontável de jovens expostos à marginalidade; o Deporte para los Desplazados, na Colômbia, situado na área central do narcotráfico, em Medelin; o futebol feminino no Irão, um espaço onde as mulheres se despem orgulhosamente de coberturas negras que as escondem, desde o rosto até aos pés, e assim denunciam hábitos e dogmas, que as mantêm como seres agónicos e humildes; o futebol de integração em Cabul, onde também as mulheres ousam enfrentar os estigmas de uma cultura milenar, que as subvaloriza, que as escraviza, que as quer acocoradas aos pés do marido, do pai ou do irmão; os clubes de “torcidas organizadas”, no Japão, “com um total de 67% dos seus integrantes, composto por crianças e por mulheres”, libertando assim os jogos de um ambiente nervoso, irascível, impulsivo; as “peladas” dos fins de tarde, no deserto do Egito, em Gizé, um autêntico lazer desportivo, que as mulheres acompanham e promovem, entre árabes escuros, já velhos, de grenhas lanudas e riçadas, onde não se descortina uma expressão de simpatia ou de grima; o futebol ecuménico no Líbano, com disputas ardorosas entre equipas das três grandes religiões monoteistas e em que um altíssimo grau de religiosidade se casa com uma sublime tolerância.
Maurício Murad, com um invulgar conjunto de qualidades exigíveis a um sociólogo, refere-se ainda a Marrocos, ao Sri Lanka, ao Paraguai, a Berlim (Alemanha) e a outros países ou cidades, onde o desporto, mormente o futebol, ensaia um humanismo em plenitude, e por isso com um futebol que pode ter violência, mas não é violento. Não deverá esquecer-se também o papel da UEFA e da Fifa, nas lutas contra o racismo e em prol do “fair play”, incluindo o financeiro. “A Uefa vai abrir um inquérito aos adeptos do CSKA, por cânticos racistas, no jogo da Champions com o City da passada quarta-feira” noticiou A Bola, de 2013/10/25.
Ao Padre António Vaz Pinto, José Saramago confessou: “Não sou crente. Para mim, Deus não existe mas, digo e repito, o facto de Deus existir para os outros faz com que exista para mim”. Contudo, “aquilo que somos ao Cristianismo o devemos” (in Brotéria, Abril de 1992, pp. 408/409). O desporto moderno nasceu num colégio universitário britânico, dirigido pelo cónego Thomas Arnold. Até o desporto tem, entre outras, raízes cristãs. Ora, o Deus de Jesus Cristo (ao contrário do Deus da inquisição e de alguns papas, reis e ditadores) não é o Moloc insaciável de sacrifícios sangrentos, mas o Deus-Pai que nos propõe o amor como a resolução de todos os problemas da vida: “amai os outros como a vós mesmos”. A transcendência, em direção ao amor, é o sentido da vida.
Lévinas (En découvrant l’existence, avec Husserl et Heidegger, Ed. Vrin, p. 27) assinala que “a intencionalidade é essencialmente o ato de emprestar um sentido”. O Desporto, como ação humana, implica necessariamente a inteligibilidade do que se faz e o Desporto é tanto mais inteligível quanto mais, nele, transcendência e amor surgirem como condições necessárias. É preciso, de uma vez por todas, afirmar que não basta correr, ou ir ao ginásio, para se ter saúde, porque a saúde só acontece numa sociedade diferente.
Tem razão o Padre Teilhard de Chardin, no seu Fenômeno Humano: “Quanto mais o Homem se tornar Homem, menos aceitará movimentar-se a não ser para algo de interminamente e indestrutivelmente novo” (p. 257). E aqui, sim, com o Homem novo e um Mundo novo, a saúde é a sua “consumação” e o Desporto um dos aspetos de uma saúde que não é física tão-só, ou seja, que sabe que o seu fundamento é muito mais do que uma simples atividade física.
Para mim, portanto, o futebol pode ter violência, mas não é violento A recusa de uma Filosofia do Desporto, em certos setores ligados ao estudo do Desporto, incluindo as universidades, confunde-se com a recusa de modelos metafísicos e a normatividade que deles emana. Além disto, alguns órgãos da Comunicação Social hipervalorizam o exibicionismo doentio e o donjuanismo estéril de alguns jogadores (o Balotelli é um exemplo), a ostentação faraônica de riqueza, a especialização precoce de jovens e crianças, fomentada quase sempre por empresários sem escrúpulos. Enfim, tudo o que venho de escrever faz do futebol um mundo polícromo, mas pungente, numa avassaladora sensação de ausência de certos valores.
Ora, foi com estes valores que o futebol nasceu; é com estes valores que os superdotados podem ser campeões. O campeão do futuro começa por ser Homem, para poder ser campeão. Já o tenho dito e repito: antes de cada um dos treinos, o técnico principal deve levantar, de si para si, esta questão: qual é o tipo de Homem que
eu quero que nasça deste treino?… Porque é com Homens que o futebol pode ser Futuro. O futebol e tudo o mais.
*Antigo professor do Instituto Superior de Educação Física (ISEF) e um dos principais pensadores lusos, Manuel Sérgio é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa, Doutor e Professor Agregado, em Motricidade Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa.
Notabilizou-se como ensaísta do fenômeno desportivo e filósofo da motricidade. É reitor do Instituto Superior de Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares do Instituto Piaget (Campus de Almada), e tem publicado inúmeros textos de reflexão filosófica e de poesia.
Esse texto foi mantido em seu formato original, escrito na língua portuguesa, de Portugal.