Queridos amigos,
Já há muito pensava em escrever-vos esta carta. Atingi os oitenta anos (a vida parece um rio com pressa de desaguar), mas procuro não envelhecer, nem no modo, nem no espírito. E, porque julgo conhecer, com alguma nitidez, o Brasil e o povo brasileiro (fui mesmo professor na Faculdade de Educação Física e na Faculdade de Educação da Unicamp, onde conheci o prof. João Paulo Medina, um dos meus mestres para uma compreensão mais holística do futebol) – não me surpreende que tenha nascido no Brasil o Bom Senso F.C.
E sob a inspiração do Dr. Sócrates, ex-jogador e ex-médico, que faleceu em 2011, com toda a certeza o futebolista de mais séria formação política, que eu conheci em toda a minha a vida. Ele foi um dos grandes artistas da história do futebol mas, antes de tudo, foi cidadão brasileiro, sentindo-se por isso responsável pelo presente e pelo futuro de todos os brasileiros…
Se o futebol é desporto, ele é necessariamente uma instituição educativa e, como tal, deve ajudar todos os agentes do futebol a cuidarem da suas faculdades físicas e fisiológicas e ainda intelectuais, emocionais, políticas, morais. Tornar a pessoa mais pessoa é o objetivo primeiro da prática desportiva. Por isso, no desporto, mais importante que a competição é a solidariedade, mais importante que o prestígio pessoal é a cultura da justiça e da liberdade, mais importante do que as vitórias e as derrotas é a saúde dos atletas, sujeitos a calendários que os obrigam a três jogos semanais (os jogadores já não se treinam, recuperam tão-só do esforço desmesurado do jogo anterior).
E, a par de tudo isto, um recatado patriotismo, não um patriotismo demagógico, explorando-o em proveito próprio, como o patriotismo daqueles políticos que parecem estremecer de amor pátrio e são os primeiros a pôr as mãos em dinheiro… que é de todos!
Mas, será que o futebol profissional (o meu espetáculo favorito) é mesmo desporto? Concorre esta modalidade à saúde dos praticantes? No Brasil, rebeldes a todo o conformismo e absentismo, há profissionais de futebol que o não aceitam, nos moldes atuais, como fator de educação e saúde. Assim o pensam, entre outros, o “zagueiro” corintiano Paulo André; o idealizador do movimento e que se inspirou no Dr. Sócrates, para criar o Bom Senso F.C.; o veterano “goleiro” Dida; D’Alessandro, argentino e capitão do Inter; Rogério Ceni, ídolo são-paulino e pessoa de grande sensatez, foi um dos primeiros jogadores a “encampar” a ideia; Alex, meia do Coritiba e porta-voz do grupo. E muitos mais nomes aqui poderia invocar, como Barcos do Grêmio, Gilberto Silva do Atlético-MG, Lincoln (Coritiba), Fabrício do São Paulo, Rafael Moura do Internacional, Correa da Portuguesa, etc., etc. De assinalar ainda que o Neymar, o Kaká e o Robinho, também eles abraçaram a causa do Bom Senso.
Mas, quais são as mais instantes reivindicações do Bom Senso F.C.? A Folha de S. Paulo, de 7 de Novembro de 2013, dá assim notícia do que se passava: “O Bom Senso F.C. rechaça a proposta de calendário da CBF, para 2015 (…) e pretende fazer protestos. O tom que será adotado, porém, divide as opiniões do movimento. É consenso no grupo (com mais de mil atletas) que o projeto não atende as solicitações. A proposta concede férias de 30 dias e um mês de pré-temporada, mas ,mantém um número alto de jogos”.
Como se sabe, a história do desporto ensina que as práticas desportivas se construíram como representações de batalhas simuladas, onde há sempre opositores, reais ou simbólicos, que é preciso superar e vencer. Por seu turno, os jornalistas, os escritores e as mais sofisticadas tecnologias, quando se ocupam da alta competição desportiva, dão livre curso ao reforço dos aspectos competitivos do desporto. E os estádios transformam-se assim num cenário de consciências coletivas, de identidades tribais, de gestas dramáticas e épicas e de protagonistas carismáticos, heróis que o tempo não apaga.
Hoje, como qualquer cego vê, o espetáculo desportivo pouco mais é do que uma empresa capitalista, onde a mercantilização do desporto se processa em vários níveis. Um deles é este: até os campeões, os heróis de que o sistema capitalista diz orgulhar-se, são mercadoria que se compra e se vende. E, porque mercadoria, dizendo (mesmo sem o dizer) que, na nossa sociedade neoliberal, a competição econômica é o sentido da vida, pouco contando, nesta competição sem freios, a saúde dos atletas. E dizendo ainda que a hierarquia, que as classificações finais registram, não se devem a nada mais do que ao rendimento físico e não (também) a critérios de ordem intelectual, social e política.
Aliás, a glorificação do desporto, na base exclusiva do rendimento físico, é uma forma encapotada de ajudar à formação de bestas esplêndidas e não de cidadãos livres e libertadores. Portanto, o corpo dos jogadores profissionais de futebol não pode observar-se, como prolongamento ou imitação da máquina, como resultado de uma preparação física onde biologismo e economicismo se confundem.
No sistema capitalista, o corpo é objeto, não é sujeito, não tem valores, nem sonhos, nem desejos – é instrumento do lucro, nada mais! Tudo isto o sabem os jogadores do Bom Senso F.C., que não aceitam a derrota, diante da sociedade injusta, antes de a competição principiar. Por isso, queridos amigos, vos abraço, com um abraço sobre o coração, relembrando com saudade o Dr. Sócrates, jogador de futebol, médico e um cidadão de admirável consciência política.
*Antigo professor do Instituto Superior de Educação Física (ISEF) e um dos principais pensadores lusos, Manuel Sérgio é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa, Doutor e Professor Agregado, em Motricidade Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa.
Notabilizou-se como ensaísta do fenômeno desportivo e filósofo da motricidade. É reitor do Instituto Superior de Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares do Instituto Piaget (Campus de Almada), e tem publicado inúmeros textos de reflexão filosófica e de poesia.
Esse texto foi mantido em seu formato original, escrito na língua portuguesa, de Portugal.