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Quero crer que, escondida no meio dos meus inúmeros defeitos, se encontra em mim uma virtude: dá-me prazer o ato de admirar o que verdadeiramente deve ser admirado, por outras palavras: o que é mesmo admirável. Entre o pouco que sou ou valho, deixem-me então distinguir uma qualidade: na minha indispensável atitude judicativa de “aprendiz de filosofia”, de tudo o que me parece um trabalho honesto e competente me aproximo, com a boa fé suficiente, para aplaudir, para julgar, para aprender. Este sentimento de admiração o senti diante do livro Filosofia e Futebol: troca de passes (Editora Sulina, Porto Alegre, 2012) da autoria de Luiz Rohden, Marco Antonio Azevedo, Celso Cândido de Azambuja e outros.

É um livro de prosa pujante e significativa cujo colorido e graça, bem brasileiros, dão uma agradável tonalidade de originalidade e frescura ao aparato das ideias. Trata- se, portanto, de uma obra de intelectuais brasileiros, simultaneamente “torcedores” do futebol. E assim o seu estilo vivo e castiço é um nítido espelho onde se reflete o que o futebol (nomeadamente o brasileiro) é e o que vale. Nela se descobre uma citação de Hilário Franco Júnior, a qual sublinha que, no Brasil, o “futebol é bastante jogado e insuficientemente pensado”. Mas o mal, que os autores e o Hilário Franco Júnior lastimam, não o surpreendemos tão-só no Brasil. Por esse mundo fora, há muita gente, estudiosa e imaginosa, que se ocupa do futebol, espiolhando até o que de mais escondido tem a sua originalidade. Mas muitas vezes o seu pessimismo demolidor e negativista não é acompanhado do realce das enormes virtualidades em que o futebol (no meu entender: o fenómeno cultural de maior magia, no mundo contemporâneo) se desentranha, na sociedade hodierna. Os agentes do futebol têm defeitos? É evidente, pois são seres humanos! Por isso, os defeitos do futebol estão nele… por contágio de cada um de nós!

No futebol, como em qualquer atividade humana, assoma uma primeira constatação: ele não encontra em si mesmo a sua plena inteligibilidade, porque não pode conceber-se fora da totalidade social e cultural que o sustenta. Não há futebolistas, porque há futebol, mas há futebol, porque há futebolistas. Lá volto eu a uma ideia que defendo, há 40 anos: o futebol não é só uma atividade física, mas uma atividade humana. Com as qualidades e os defeitos de qualquer atividade humana! Ruy Carlos Osterman assinala o futebol como modelo de solidariedade. “A sociedade é muito mais individualista, é muito mais fechada em si mesma e nos seus valores de consumo do que gregária, unida, solícita, colaboradora (…). O futebol não é apenas uma metáfora da vida real. Ele é, na verdade, a reprodução idealizada da vida real, embora em outros termos – o que é diferente de uma metáfora.

A metáfora é uma ideia no lugar de outra ideia. Mas aqui é um fato no lugar de outro fato” (p. 123). Luiz Rohden, associando, com mestria, a filosofia ao futebol, escreve: “A filosofia precisa ser posta em jogo sempre, faz parte da sua natureza estar em jogo, jogar com o real. Disso decorre o pressuposto segundo o qual ela vive do diálogo incessante com outras áreas do conhecimento e nisso ela tem sua razão plena de ser” (p. 181). No entanto, “há alguns povoados e vilarejos do Brasil que não têm igreja, mas não existe nenhum sem campo de futebol” (Alex Bellos, Futebol, o Brasil em campo, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2003, p. 10). Ou seja, no Brasil, o futebol é filosofia e a filosofia é futebol. Neste caso (e no meu modesto entender) o futebol de Pelé e Garrincha e Didi e Sócrates e Tostão e Zico e Ronaldo, o fenómeno, e Romário e Ronaldinho Gaúcho e Neymar, etc., etc. diz respeito a uma atitude filosófica brasileira resultante do modo-de-ser do homem brasileiro.

O sentimentalismo incontido, a sensibilidade ardente, a emotividade, de preferência à frieza e ao intelectualismo e racionalismo doutras culturas formam um corpo de doutrina que os futebolistas e os filósofos traduzem, cada um à maneira que lhes é própria. Há uma filosofia brasileira, como há um futebol brasileiro. A filosofia é um conhecimento apátrida, pela sua metafísica, pelo plano lógico em que se coloca. Mas, enquanto pesquisa, num lugar e num tempo, ela nacionaliza-se, espacializa-se, temporaliza-se. Do futebol poderíamos dizer outro tanto: pelas instituições e pelas regras, não tem pátria; pelo caráter, personalidade e linguagem corporal dos jogadores, o futebol tem alma. Há pois um laço profundo entre o futebol e a filosofia e uma reciprocidade tão profunda que uma rutura entre ambos é absolutamente impossível. Recordo as minhas conversas, na Unicamp, com o João Batista Freire, naqueles irrequietos anos de 1987 e 1988, onde tudo se discutia, do futebol à filosofia e à política. Era ele, um homem de ternura e de bondade incomparáveis, acudindo de pronto às minhas dúvidas, que me dizia: “O futebol brasileiro é também a consciência da nossa historicidade como povo, com alma própria. Por isso, o nosso estilo de jogar futebol é inconfundível. É artístico, como nenhum outro o é”. Para Luiz Rohden, com o extenso horizonte dos seus olhos fascinados pelo futebol, “a produção do jogo belo fascina e continuará a cativar os amantes do futebol. Garrincha é exemplo eterno disso; é a encarnação do paradoxo segundo o qual é possível jogar a sério, visto que jogar é caçoar, é gracejar (…). Enfim, no futebol-arte estão conjugados dois elementos básicos: por um lado, possui regras e requer técnicas repetitivas, aplicáveis universalmente, que são produtivas e eficientes; por outro lado, participam dele a criação, a improvisação e também a beleza” (p. 189). Do futebolista de recursos técnicos e físicos e táticos invulgares, emerge quase sempre trabalho e beleza, há portanto muito para uma objetiva análise de índole filosófica e futebolística.

Celso Cândido de Azambuja (mais um dos autores deste magnífico livro) afaga, com deslumbramento, o futebol brasileiro e sustenta que “no Brasil, o futebol não é simplesmente uma alienação, como pretendem alguns críticos de estirpe (…). Para outros, muitos, o futebol é uma verdadeira benção, um caminho, uma esperança, uma salvação (…). Faz parte da saúde física e mental do povo brasileiro” (p. 261).

O livro Filosofia e Futebol: troca de passes é uma oportuna chamada de atenção para o respeito que o futebol, como atividade humana, nos merece – atitude de respeito tantas vezes substituída pela absolutização do mercado e pela ditadura do lucro. O ser humano ocupa uma posição privilegiada, pois que é nele que a natureza se faz consciência. Parece-me, por isso, imperioso e urgente uma reflexão antropológica, no futebol, como treino e como competição e como espet&aa
cute;culo. O futebol, pela sua inigualável popularidade e até pela sua atitude normativa, tem condições únicas de assumir a tarefa específica de apontar caminhos para uma organização solidária e fraterna das relações sociais. O futebol tem de viver-se como valor, como experiência de comunhão e de humanização. É isto, no meu pensar, o que o futebol tem o dever de cultivar. O perigo que nos espreita, no futebol e no mais, não é o choque de civilizações, mas a ausência de valores compartilhados. Parabéns aos autores e ao editor deste livro – que vai ser, tenho a certeza, um ponto de partida, para novas reflexões filosóficas, sobre o futebol, se possível mais atuais e mais atuantes.

 

*Manuel Sérgio é antigo professor do Instituto Superior de Educação Física (ISEF) e um dos principais pensadores lusos, Manuel Sérgio é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa, Doutor e Professor Agregado, em Motricidade Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa.

Notabilizou-se como ensaísta do fenômeno desportivo e filósofo da motricidade. É reitor do Instituto Superior de Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares do Instituto Piaget (Campus de Almada), e tem publicado inúmeros textos de reflexão filosófica e de poesia.

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