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A reflexão é uma atitude afastada do mundo do futebol. Tudo, nele, é um apelo ao mais ardente sentimentalismo, posto ao serviço de objetivos menores de apologia ou denegrimento. Ora, findo que foi o Mundial de Futebol, chegou a altura de deixarmos de lado aquela fase dogmática-autoritária em que tudo o que há a dizer sobre o futebol já foi dito, ou que há uma “via régia crítica” que só os antigos praticantes podem trilhar e façamos no futebol o que entrou de fazer-se nas outras áreas do conhecimento: a interdisciplinaridade entre a teoria e a prática! Desde 1977, quando publiquei o meu livrinho A Prática e a Educação Física, venho afirmando que “quem só teoriza não sabe e quem só pratica repete”. Isto, no intuito de ligar duas noções que, nesses anos já defuntos, pareciam inconciliáveis, no desporto: a teoria e a prática. Quando, dezanove anos depois, li e estudei La Fin des Certitudes (O Fim das Certezas), de Prigogine, retomei a ideia-mestra que são as incertezas da teoria, ou seja, da reflexão sobre a prática, que antecipam uma prática nova. A prática e a reflexão sobre a prática (a teoria) ou se unem indissoluvelmente, ou não há progresso. É preciso de facto integrar, no mesmo todo, as certezas e as incertezas, a teoria e a prática, o abstrato e o concreto. Como ensina Edgar Morin: no pensamento científico, o investigador navega num oceano de incertezas, por entre ilhéus e arquipélagos de certezas. Procuremos então um corte, uma rutura, em relação às nossas rotinas interpretativas, dado que, como já o disse Heidegger, pensar consiste em repensar o já pensado, para pensar o ainda não pensado…

Cito de cor meia dúzia de palavras extraídas do Quod Nihil Scitur de Francisco Sanches: “É fácil portanto ver quão estultos são os que, desprezando a observação das coisas, vão buscar toda a ciência aos autores”. Já um intelectual dos séculos XV e XVI (intelectual notável, percursor de Descartes) ridicularizava um saber meramente livresco, teórico tão-só. Só que na Sociedade Pós-Capitalista (Peter F. Ducker), que é a nossa, o capital e o trabalho baseiam-se no conhecimento. E conhecer é transcender a dicotomia teoria-prática e, com elas, tentar uma síntese que nos conduza a um conhecimento novo. Por isso, um treinador de futebol (ou de qualquer outra modalidade), hoje, mais do que um gestor de recursos humanos, é o responsável pelo desempenho e aplicação de um determinado conhecimento – que nâo é só teoria mas, sem a reflexão teórica, não evolui. No desporto, como na medicina, ou no direito, ou na engenharia, ou na física, ou na química, etc., etc. , o conhecimento há-de ser praticamente eficaz. No alto rendimento, o conhecimento manifesta-se nos resultados. Mas, sem conhecimento, devidamente organizado, as vitórias não acontecem. Foi esta, salvo melhor opinião, a grande lição dos alemães, neste Mundial do Brasil. E, por isso, venceram. Eles foram uma equipa de futebol, entre um conhecimento que morre e outro que nasce, que jogaram futebol, com o saber atualizado da Sociedade Pós-Capitalista ou Sociedade do Conhecimento ou ainda Sociedade das Organizações. Do que venho de escrever poderá inferir-se que há muito “agente do futebol” que está a mais no futebol, pela sua sujeição absoluta ao que era novidade… há 50 anos atrás!

Quando perguntaram a Joachim Low, nos primeiros dias de 2014, se o Sami Khedira, lesionado com gravidade, em 15 de Novembro de 2013, após uma disputa de bola com o Andrea Pirlo, poderia jogar, respondeu, com naturalidade: “É provável. Só tenho uma certeza, ele faz muita falta à equipe”. E o jornalista insistiu: “Mesmo sem o Khedira espera ganhar o Mundial?”. Lacônico, proferiu a mesma palavra: “É provável”. Prigogine acentuou, em 19 de Setembro de 1998, na Universidade Livre de Bruxelas: “Estamos a caminhar de um mundo de certezas para um mundo de probabilidades (…). E assim voltamos a dar valor à noção de… valor. Num mundo determinado e determinista, não há valor” (in Arnaud Spire, La pensée Prigogine, Desclée de Brower, p. 173). O valor, no alto rendimento, supõe conhecimento, organização e trabalho especializado. É a organização e o trabalho especializado que dão, de fato, eficácia aos conhecimentos. O conhecimentos, como teoria que são, não transformam. Os conhecimentos transformam, quando a organização e o trabalho os materializam. Quando um jornalista insistiu na questão: qual o segredo da vitória? Joachim Low desfez assim as dúvidas: “Dez anos de trabalho!” Poderia ter respondido: “Dez anos de estudo, de organização e de trabalho especializado!”. Passo a palavra a Peter F. Drucker: “Porque a organização moderna é uma organização de especialistas do conhecimento, ela tem de ser uma organização de iguais, de colegas, de sócios. Nenhum está colocado mais acima do que um outro” (Sociedade Pós-Capitalista, Atual, Lisboa, 2013, p. 68). De facto, numa equipa, “eu sou um de nós”. Como a seleção alemã que, sem Messis, Ronaldos ou Neymares, ganhou o Mundial que findou, há poucas horas…

Fico atônito ao verificar que a esmagadora maioria dos nossos treinadores, nem lê, nem sabe o que há-de ler. Servem-lhes um “chá requentado” de autores que dizem o que toda a gente sabe e o treinador perde paulatinamente a vontade de conhecer os autores que verdadeiramente fundam o conhecimento. E entre os autores que fundam o conhecimento de um treinador de futebol não há nenhum daqueles que já vos aconselharam! Com toda a certeza, meus caros treinadores de futebol! Os meus amigos já leram o Peter Drucker, o pai da gestão atual? Só com “Avé-Marias” a Nossa Senhora de Fátima não chegaremos aos cumes que, de longe, contemplamos. O Sr. Scolari provou-o para convencer os incrédulos. E tendo à sua disposição alguns dos melhores jogadores do mundo. Há duzentos, em números redondos, treinadores portugueses a trabalhar, rodeados de sucesso e de admiradores, por esse mundo além. Mas serão expoentes de uma época, se estudarem mais e pensarem melhor. Perguntem ao Doutor Eduardo Barroso, prestigiado médico-cirurgião doublé de amante do futebol, as “causas das causas” do valor incontroverso da sua prática científica. A resposta será esta, com as mesmas ou outras palavras (se eu me enganar, tenho a certeza que ele me telefona, porque serei sempre seu discípulo, nesta matéria): “Uma prática incessante, uma informação cuidada e muito estudo”. Na teorização do conhecimento científico, há prática, em primeiro lugar, e depois informação cuidada e um estudo sem domingos.

Mas.., qual informação? Para já, comecem por ler dois livros: A Estrutura das Revoluções Científicas, de Thomas K
uhn e a Sociedade Pós-Capitalista de Peter Drucker. Depois, indicar-vos-ei o Edgar Morin e o Ilya Prigogine. “Mas (já estou a ouvir a graçolarem comigo) o que é que essas leituras têm a ver com o futebol?”. Amigos, eu nunca ensinei o WM, nem o 4-2-4, nem o 4-3-3, nem o 3-5-2, nem o 4-4-2, nem o 4-2-3-1. Eu nunca ensinei futebol. Eu procuro (com todas as minhas limitações) ensinar a pensar o futebol. O que é coisa despicienda… principalmente para os que não sabem pensar! Guardo comigo uma carta de José Maria Pedroto, que me foi dirigida, quando já se vislumbrava o seu passamento (23-1-84): “Caro PROFESSOR. É a primeira vez na vida que conscientemente escrevo esta palavra – professor- em letras grandes. É para si”. Por essa altura, o Sr. Pedroto lia o Gabriel Garcia Marquez e eu aconselhava-lhe a leitura de Gaston Bachelard. Não me sinto livre perante a verdade. É a minha consciência moral que me obriga a que diga, sem receios, que a “revolução”, levada a cabo, unicamente (sem a intromissão de mais ninguém) pelo saber de José Maria Pedroto e pela argúcia de Pinto da Costa, no F.C.Porto, teve um radical fundante: o conhecimento! Nunca fui “portista”. A minha admiração pela dupla Pinto da Costa-José Maria Pedroto nasce na subordinação àqueles valores, sem os quais eu penso ser impossível viver humanamente. E peço desculpa se desta vez irrompeu da minha prosa algum assomo de vaidade…
 

*Manuel Sérgio é antigo professor do Instituto Superior de Educação Física (ISEF) e um dos principais pensadores lusos, Manuel Sérgio é licenciado em Filosofia pela Universidade Clássica de Lisboa, Doutor e Professor Agregado, em Motricidade Humana, pela Universidade Técnica de Lisboa.

Notabilizou-se como ensaísta do fenômeno desportivo e filósofo da motricidade. É reitor do Instituto Superior de Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares do Instituto Piaget (Campus de Almada), e tem publicado inúmeros textos de reflexão filosófica e de poesia.

 

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