O sociólogo Maurício Murad, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e do mestrado da Universo, costuma dizer que é impossível dissociar estádios de futebol do que acontece do lado de fora. Arenas esportivas são microcosmos, e por isso servem como amostragem de virtudes e problemas da sociedade. Esse perfil deve-se basicamente a três pontos: a composição heterogênea do público, a relação emocional das pessoas com o espetáculo e a falta de um trabalho em sentido contrário.
Estádios de futebol têm setores com diferentes preços, condições e serviços. Esse perfil e a abrangência da modalidade na formação cultural, sobretudo no Brasil, garantem a heterogeneidade do público. É uma das raras situações no país em que pessoas que vivem realidades diferentes compartilham uma paixão. Enquanto a bola corre de um lado para outro, ricos, pobres, brancos, negros, magros, gordos, homens e mulheres vivem apenas o que acontece ali. Quem nunca interagiu com um total desconhecido em um estádio de futebol? Quem nunca abraçou um estranho para celebrar um gol?
O contato entre estranhos é facilitado por um sentimento comum e pelo segundo fator que caracteriza estádios de futebol: são ambientes passionais. Ali, pessoas aproveitam para descarregar o estresse cotidiano e viver uma metonímia da felicidade que esperam para seus cotidianos.
Entender esses dois conceitos é fundamental para saber o que é um estádio de futebol. É um local com pessoas boas e pessoas ruins, assim como acontece do lado de fora. Além disso, esses “bons” e “ruins”, que nem sempre são assim tão rasos e peremptórios, têm relações exageradas porque estão num ambiente que fomenta isso.
E isso nos leva ao terceiro ponto, que na verdade é o objeto deste texto. Estádios são reflexos da (falta de) educação da sociedade, e essas reações são amplificadas pelo ambiente. Mas tudo podia ser direcionado se houvesse um trabalho educativo em sentido contrário. Afinal, para que serve o público que assiste a jogos de futebol?
No mundo corporativo é bem mais consolidada a noção de marketing institucional. Tão importante quanto vender empresa ou produtos para o público é vender isso para os próprios funcionários. Eles precisam entender qual a função deles e o que podem ganhar estando ali.
E no esporte? Quem já pensou em educar torcedores e mostrar a eles a função que o público tem em um estádio? Quem já pensou em criar padrões e comportamentos adequados a um conceito sistêmico de espetáculo? A plateia é parte do todo, afinal.
Tomo aqui um exemplo do vôlei: a popularização da modalidade no Brasil tornou-se mais contundente a partir da geração que ganhou medalha de prata nos Jogos Olímpicos de Los Angeles, em 1984. Entre o fim da década de 1980 e o começo dos anos 1990, houve um esforço coletivo para aproveitar o furor em torno do feito. Uma das medidas foi a criação de animadores de torcida em jogos da seleção brasileira. Eles distribuíam brindes, puxavam gritos e acrescentavam uma atração ao evento.
A figura dos animadores de torcida é muito comum em ligas esportivas dos Estados Unidos. Também é corriqueira por lá a ideia de promoções e ações feitas especificamente para o público que vai às arenas. O jogo não é uma atração que se encerra no que acontece no campo (ou quadra).
O Botafogo deu outro exemplo no Brasil. Quando assumiu o estádio Engenhão, que havia sido construído para os Jogos Pan-Americanos de 2007, o time do Rio de Janeiro teve um problema de logística: a arena é afastadas, e a maioria do público só entrava em cima da hora das partidas. Resultado: longas filas e confusão na entrada.
A solução que a diretoria encontrou para isso foi programar shows de artistas botafoguenses – músicos e humoristas, principalmente – e oferecer um “prêmio” ao público que chega mais cedo. Foi algo pontual, mas teve um efeito educativo.
Um dos argumentos mais usados no Brasil para defender a venda de bebidas alcoólicas em estádios é o comportamento do público. “O torcedor fica do lado de fora até perto do apito inicial, bebe em menos tempo e em maior quantidade”. É clara a dicotomia entre as duas linhas de raciocínio.
O que aconteceu na Arena Grêmio na última quinta-feira (28) tem relação direta com tudo isso. Torcedores do time gaúcho direcionaram ofensas racistas ao goleiro Aranha, titular do Santos. Uma moça foi flagrada pelo canal fechado “ESPN Brasil” chamando o jogador de “macaco”.
Não foi o primeiro episódio de racismo em estádio de futebol. Não foi sequer o primeiro envolvendo a torcida do Grêmio – a mesma que fez troça de torcedores do Internacional por causa da morte do ídolo Fernandão e que tem cânticos homofóbicos direcionados ao rival, vale lembrar. E o que foi feito para criar um comportamento contrário?
Infelizmente, vivemos numa sociedade em que o preconceito é muito presente. O estádio é apenas um exemplo disso, e as manifestações são potencializadas pelo emocional aflorado. Ali, xingamentos são provocações ou apenas arroubos de quem se sente protegido por estar num grupo.
Já passou da hora de tratarmos o comportamento do público como um componente fundamental do esporte. Precisamos pensar no futebol que queremos, e isso inclui doutrinar as pessoas que acompanham a modalidade. Não podemos esperar que a relação passional sustente o segmento.
Na última semana, o jornal “Lance!” divulgou resultados de uma pesquisa sobre torcidas feita em parceria com o instituto Ibope. O Flamengo ainda é dono do maior grupo de adeptos do país (16,2%), seguido pelo Corinthians (13,6%), mas ambos perdem para os desinteressados (23,4%). No país do futebol, o maior grupo ainda é o de pessoas que não seguem sequer a seleção brasileira.
Ainda assim, como tem mais de 200 milhões de habitantes, o Brasil tem pelo menos 150 milhões de interessados por futebol. Pode não ser o país mais apaixonado pela modalidade em proporção, mas existe um potencial claro aí: se bem explorado, esse pode ser o maior mercado de futebol do planeta.
O que falta para isso, então? Falta uma lógica de comunicação mais próxima do que o mercado eficiente faz. Falta conhecer o público, entender os anseios dele e direcionar o comportamento. Falta pensar no futebol que queremos.
Essa noção tem de incluir o campo, é claro. O jogo que queremos é rápido, de transição e vertical como o do Real Madrid de Carlo Ancelotti? É lento, paciente e apaixonado pelo passe como o Barcelona de Pep Guardiola? Há diferentes formas de ser vencedor e de encantar. Escolher entre elas é um processo que deve incluir diferentes áreas e deve alicerçar um plano de comunicação complexo. E o público
não pode ser excluído disso.