Perceber com propriedade o que realmente é a Periodização Tática na sua profundidade, não é tarefa fácil como parece. Antes de qualquer coisa, essa metodologia precisa de investigação, dedicação e entendimento do núcleo duro do processo, o morfociclo padrão. Isso implica na compreensão relacional dos princípios metodológicos, no dinamismo interativo entre a ideia de jogo, processo, operacionalização e suas propriedades emergentes e na transferência qualitativa com outras áreas da ciência que dão suporte e vigor especial. Compreendendo essa questão, fica mais límpida a perspectiva sistêmica, cujo cerne reside na complexidade. E o mistério tem a ver com isso, com dinâmicas, isto é, está nas inter-intenções e inter-decisões, nas interações, nas conexões, nos (re)ajustamentos e nos padrões de organização.1
Sua expansão nessa década, por diversos meios, tem gerado adeptos, críticos, diferentes perfis e formas de enxergar, estudar e pesquisar. Mas como em qualquer área de conhecimento, muitas precipitações podem ocorrer, até um entendimento maior e concreto surgir. E desvios conceituais vêm sendo vistos ao longo dos anos, muitos desconexos do fio condutor que é alma do processo e está em constante desenvolvimento. Panoramicamente, o que se enxerga, são algumas pessoas tentando transmitir, na essência, o conteúdo “sem fim” da metodologia e outras vagando em superficialismos e predicados soltos. Nesse caso, acende uma classe de miscelânea conceitual, que foge da raiz, mas ratifica inicialmente uma curiosidade, ocasionando a frente um nível de aprofundamento maior, estagnação ou desistência de sua clareza. Algo normal quando algum fenômeno vira febril e atraente.
É próprio da percepção humana desenvolvida ou desmedrada que ideias vão se tornando mais ou menos fidedignas. Nota-se, com o crescimento da Periodização Tática, que a grande diferença entre os “curiosos”, “modistas”, “investigadores céticos”, ”radicais extremistas”, “tecnocratas” e os “buscadores sinceros”, reside na visão da sensibilidade criativa, aberta, transformadora e dinâmica com que Vitor Frade, diariamente, geria suas aulas da Universidade do Porto, nas suas conversas e nos seus textos e apontamentos atualmente.
Essa diferença do perfil dos buscadores, o entendimento da complexidade (complexidade não é dificuldade), não é algo inacessível, de outro planeta, como muitos pensam, mas como tudo na vida, necessita de esforço profundo. Quando este não for profundo, sincero e aberto o suficiente, fica mais difícil entender que a Periodização Tática não é uma lógica estacionada, mas uma lógica com sentido. A teia de conexões dessa metodologia é uma extensão da teia da vida, do organismo humano, da inteireza do jogo, das relações humanas, das relações da produção de um jogar em todos os seus níveis e dos princípios balizadores (Alternância Horizontal, Progressão Complexa e Propensões) que firmam o núcleo duro do processo (Morfociclo).
Claro que para encontrar esse “esforço profundo”, ninguém precisa passar dias e noites como carrapato ao lado do Prof. Vitor Frade ou se teletransportar quanticamente para Porto. A correta busca por seus referenciais e outros, advindo de pessoas que continuam modelando, dinamizando e propagando o profundo conhecimento, também ajuda no entendimento desta metodologia. Então, a Periodização Tática não é uma questão ideológica radicalista restringida apenas para pessoas que fazem parte de uma facção fundamentalista, como muitos pensam. Ela é um incentivo a propagação do conhecimento adequado, a criatividade individual, balizados por princípios particulares, que levam em consideração um contexto-prático por convicções concepto-metodológicas-operacionais e um contexto-ambiente por visualizações culturais. Nessa intra-relação e inter-relação mora o pote de ouro.
E o mais sensível de tudo isso, é saber como propor transformações, sem romper a ideia de equilíbrio-desequilíbrio, sem desvirtuar e deixar incoerente sua essência transgressora. Algo que demanda muita sensibilidade e, sem dúvida, gera dilemas contextuais, operacionais e fundamentais.
E é deste hiato entre o modo como o treinador pretende que a sua equipe jogue e o modo como ela vai jogar regularmente, que emerge a pertinência da questão de COMO TREINAR UMA IDEIA DE JOGO.2 E a Periodização Tática atenua isso, pois estabelece ligação permanente entre os dois lados da equação: a ideia e a operacionalização.2 Assim, ela se serve de uma lógica processual ou um padrão matricial (Morfociclo), com o propósito fundamental de permitir a aquisição de um jogar específico, uma concepção de jogo, respeitando os princípios metodológicos.
Na Periodização Tática, as equipes não estão em forma, mas têm forma. Assume uma forma dinâmica (especificidade) plural, com várias formas (especificidades) que são vivenciadas regularmente obedecendo os princípios metodológicos distintos do tradicional.3 Daí o Morfociclo, um ciclo com conteúdo concreto a cada jogar, preenchido com forma nos diferentes dias, com a devida alternância de desempenho entre as sessões de treino.3 O entendimento do que é o Morfociclo, o porquê de ter um padrão, é uma condição fundamental para que se consiga mergulhar a fundo num enquadramento conceitual e metodológico que rompe claramente com o convecional.2
Com quase 50 anos de inquietudes do Prof. Vitor Frade, essa forma de viver o treinamento está em constante enriquecimento, pois tem uma legitimidade e um alicerce teórico singular, vigoroso, significativo e peculiar. Logo, a Periodização Tática é algo que se crê ou não se crê. Ou está com ela ou é contrário a ela. Não se pode dizer: sim, creio nela, mas…então deixa de ser Periodização Tática”4. Mas ela não é algo mecânico-linear, é puramente um mecanismo não linear ou um organismo dinâmico de construção que quer que cada equipe chegue ao seu futebol, ao futebol de cada um. Apenas é preciso respeitar ideias evitando incongruência processual-operacional-contextual.
Então, carece do “esforço profundo” para não ser confundida com uma coleção de fatos, conceitos desconexos, exercícios soltos ou outros aspectos. Ela quer fugir disso, de chavões como: “periodizar taticamente meu modelo”, “um microciclo que respeita força, resistência e velocidade”, “contração assim, assada”, “o físico não existe”, “os jogadores não trabalham fisicamente”, “espaços pequenos, médios e grandes”, “jogos reduzidos”, “exercícios com bola”, exercícios analíticos”, “utilização de exercícios mais simples ou mais sofisticados”, “exercícios sem bola”, “excessos de regras nos exercícios” e “desenvolvimento dos grandes princípios o tempo todo”. Evidente que algumas dessas possibilidades acima estão presentes no dia-dia, mas não de forma genérica e especulativa.
Longe do que se pensa, esta metodologia de treinamento não está acorrentada na cidade de Porto-Portugal. Também não está escondida nos muros reservados do Centro de Treinamento do Olival, na Escola de Formação Dragon Force, nem na Universidade do Porto. Ela nasceu aí, mas está viva, em movimento, onde tiver organismo vivo, seja no futebol, esportes coletivos e outros esportes, ela pode ser aplicada com sua estrutura particular tornando um contexto peculiar. Logo, para ela viver realmente, não se pode negligenciar que sua essência matriz tem uma origem e uma direção que levam a diferentes destinos ímpares. Ela, além de ser uma grande questão de convicção, não existe em lugar algum sem contexto. Por isso, a Periodização Tática é uma ideia para operacionalizar uma ideia, não sendo uma ciência do abstrato, in vitro, mas antes uma ciência in vivo.5
Abraços a todos e até a próxima quarta!
1 – FRADE, VITOR. Notas das aulas de metodologia II – Futebol. Porto: FADE-UP, 2010.
2 – AMIEIRO, NUNO. Os exercícios de treino aos Olhos do Enquadramento Conceptual e Metodológico da Periodização Táctica. Textos Professor Vitor Frade, 2017.
3 – MACIEL, JORGE. À volta e às voltas com a noção de Modelo de Jogo…Complexo e em Complexidade. Curso UEFA A: Tese Final, 2016.
4 – FARIA, RUI. Prefácio do livro Periodización Táctica vs Periodización Táctica. Vítor Frade Aclara de Xavier Tamatrit. (1ra Edición). Madrid: MB, 2013.
5 – MACIEL, JORGE. Periodização Tática: o “patinho feio” que se tornou num “cisne negro”. Texto do Instituto Águia, 2016.