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Não é preciso muito esforço para observar como nós, treinadores ou meros admiradores do futebol, costumamos argumentar sobre o jogo a partir da lógica do controle. ‘Queremos ter o controle do jogo’, diria alguém. ‘O jogo estava sob controle, mas nós nos desconcentramos’. A impressão é de que o jogo está sempre sob o nosso domínio, uma espécie de animal a ser domesticado pelos humanos.
Me parece que não. O mundo do jogo não é desprovido de racionalidade: tem uma racionalidade própria, diferente da nossa. A racionalidade própria do jogo funciona como funcionam as batidas de um coração: por motivos próprios, à revelia da vontade humana. Blaise Pascal, aliás, afirmou certa vez que o coração tem razões que a própria razão desconhece– um dos mais belos aforismos já escritos, especialmente verdadeiro para quem já amou ao menos uma vez na vida (além de deixar implícita uma certa primazia das paixões sobre a razão). Me parece coerente admitir que o mesmo acontece no jogo: o jogo também tem razões que a própria razão desconhece.
Em linhas gerais, vejo a ideia de controle baseada em dois pilares importantes: a razão e os sentidos. No primeiro caso, temos uma tendência a superestimar as potencialidades da razão humana, a fantasiá-la maior do que ela é, o que geralmente nos faz flertar com os sonhos, com o imaginário, mas não necessariamente com o real. Assim, não raro criamos expectativas absolutamente incoerentes com as nossas reais possibilidades. Quando lutamos pela humanização do treino e do jogo, lutamos pelo mais sincero reconhecimento dos nossos limites, pois reconhecê-los na sua inteireza é um requisito obrigatório para que possamos ultrapassá-los. Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo e os deuses.
No segundo caso, os sentidos também nos enganam. Repare que os sentidos (especialmente a visão) são a nossa porta de entrada para a experiência, o que não significa que eles sejam plenamente confiáveis. Afinal, os sentidos estão sob a influência das paixões e, além disso, os sentidos captam apenas as aparências de um certo objeto, mas não necessariamente a sua essência (a sua verdade). Ou seja: se baseamos a maioria absoluta das nossas conjecturas sobre futebol nos sentidos (o que não é errado), talvez precisemos admitir que podemos ter ótimas hipóteses, mas não alcançamos necessariamente o real. Não há controle, se você preferir.
No domingo à tarde, li e ouvi vários colegas indignados com a Espanha de Fernando Hierro, que teria sido preguiçosa e esnobe, especialmente quando estava em vantagem no placar contra a Rússia. O empate e a derrota nos pênaltis seriam uma punição, um castigo dado pelo jogo à equipe que deveria fazer mais e não fez. Mas este não me parece o ponto: a Espanha de Hierro não fez mais porque não quis. Não fez mais porque não conseguiu. Porque enfrentou suas próprias limitações e porque enfrentou um adversário inteligente, que conhecia a si mesmo e ao outro e que, por isso, defendeu-se em uma linha de cinco e baixou o bloco. Porque um dos melhores zagueiros do mundo fez um pênalti absolutamente impensável. Porque essas nuances nos escapam. Interpretar o jogo como uma relação de causa/consequência a partir da racionalidade humana é o exemplo clássico do que falamos até agora: uma ilusão disfarçada de verdade. Me parece o extremo oposto das leis que regem o jogo. Elas têm razões próprias.
Mas se não é possível controlar, o que devemos fazer? Em primeiro lugar, treinadores e treinadoras precisam deixar ir. É preciso adotar uma postura realista, que investe a totalidade das energias naquilo que pode ser controlado (nós mesmos) ao mesmo tempo em que admite a existência de uma face do jogo desconhecida, oculta – algo próximo do que os estoicos chamavam de ataraxia. Em segundo lugar, talvez o caminho não esteja no controle, mas na adaptação. Ao invés de tentar adestrar o jogo, como se adestra um animal qualquer, o treinador constrói um processo realista (é mais fácil o jogo domesticar o jogador) e, exatamente por isso, cria estratégias adaptativas, cria problemas que permitam dançar a dança do jogo a partir do repertório, das ideias e do conhecimento – de si e dos outros. Por isso, aliás, faz tanto sentido pensar que o treino é jogo e o jogo é treino.
Se você preferir, o treinador é como um médico, que faz uma anamnese da sua paciente (a equipe) e que, a partir dos recursos que têm, estabelece um tratamento razoável. À medicação principal, que resiste ao longo do tempo, nós chamamos de modelo de jogo. Ao mesmo tempo, são importantes medicações secundárias, ajustes, estratégias e ideias para tratar das moléstias específicas de cada jogo. Ao treinador, cabe avaliar diariamente os efeitos causados pelo tratamento escolhido. Assim como o médico escolhe uma dada intervenção, mas não a reação do organismo à ela, o treinador escolhe o modelo e as ideias, mas não escolhe se elas serão aceitas pelo jogo. Se não forem, cabe ao treinador adaptar-se, como faz um médico quando o tratamento inicial não dá resultados.
Porque as razões do jogo são outras e porque nós dependemos dela mais do que o contrário.
 

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PS: mudando de assunto, repare em todo o movimento de Romelu Lukaku no lance que deu a vitória à Bélgica contra o Japão. Me parece um vídeo de almanaque. Qualquer garoto que almeja ser centroavante um dia deveria ver isso:

https://twitter.com/EnricSoriano_/status/1013878435452784641
 
 

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