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Yony Gonzalez, do Fluminense, logo após decidir o jogo na Arena do Grêmio. (Foto: Lucas Merçon/ Fluminense F.C/ Reprodução: Explosão Tricolor)

 
Bastou que o Grêmio fizesse o terceiro gol, com Jean Pyerre (um belíssimo gol, por sinal), para que um enorme arsenal de clichês, escondido sob as trincheiras, viesse à tona, quase que de imediato. Três volantes, qualidade técnica, vertical, horizontal… Lugares comuns, às vezes vestidos com uma roupagem moderna, não faltam nessas horas.
Mas o jogo não é lugar comum. Grêmio e Fluminense, juntos, jogaram uma das partidas mais agradáveis do ano – e talvez isso diga mais sobre o olhar de quem vê do que sobre o jogo jogado. Neste texto, gostaria de escrever algumas ideias, não exatamente sobre o jogo, mas a partir dele. Sem ordem, sem simetria. Vamos jogando com as palavras.

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Pense comigo: o treinador é uma espécie de escultor. Ou seja, é aquele que tem uma ideia, uma ideia que chega até ele, e é aquele que, diariamente, vai até o seu ateliê, até o seu laboratório (local do labor) para esculpir a ideia. À ideia, hoje em dia, nós damos o nome de modelo de jogo. Ao processo artesanal de esculpir o modelo, nós damos o nome de treinamento.
Grêmio e Fluminense, a meu ver, são equipes esculpidas de maneira diferente. O Grêmio é esculpido para o caos a partir do meio-campo, em movimentos quase que de futsal entre Maicon, Matheus Henrique e Jean Pyerre, junto das diagonais dos pontas (Éverton e Alisson). O Fluminense, de Fernando Diniz, é esculpido para o caos desde o primeiro metro, com Rodolfo e os quatro defensores, inclusive como forma de chamar o adversário para a pressão. Ou seja, enquanto um guarda energia no começo da construção para investi-la do meio em diante, o outro investe energia desde o início, para causar desequilíbrios imediatos. Até outro dia, o Fluminense tinha um caminho importante pelo lado, com Everaldo – na ausência dele, teve de se reconstruir durante o jogo, dentro do campo. Mas são duas equipes que querem a bola, querem passar a bola, querem passar a bola bem, querem jogar bem futebol.
E isso exige coragem.

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Quando o Grêmio pressionava loucamente, naqueles primeiros minutos, eu não me preocupava exatamente com essa dita diferença entre os times. Na verdade, eu pensava o seguinte: somos nós que jogamos com o jogo ou é o jogo que joga conosco? Se o Fluminense (que tem a esperança no hino), interpretasse aquele momento de infortúnio como um filme, jamais teria reagido. Na verdade, aquele era um retrato, um recorte do jogo. Sendo recorte, seria curto, finito, um pedaço do jogo.
Mas eu pensava comigo: I) quando isso (o retrato) vai terminar? II) o que vai acontecer depois dele?

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Existe uma questão importante aqui. Treinadores e treinadoras não esculpem apenas um jeito de jogar. Nós também somos escultores de nós mesmos. E isso faz absolutamente toda a diferença. Porque quando nos esculpimos, não nos preparamos para a mediocridade (o que está na média), mas para os altos e baixos, para o céu e o inferno. Para momentos como aquele, em que o Grêmio, tranquilo, estava três gols acima. Na pele de qualquer um dos dois treinadores, o que (e como) faríamos? À primeira brisa, nossas esculturas se deformam, são facilmente destruídas, ou mantém-se firmes?
Este ponto é particularmente interessante, porque estamos falando de dois treinadores que, obviamente, não são perfeitos, mas são convictos. Esculpem com ideias e com convicção. Se mensuramos o sucesso de treinadores e treinadoras pelo número de vezes em que a bola entra no gol adversário (ao longo do tempo), então estamos inteiramente perdidos, porque treinadores não fazem gols. Treinadores esculpem, pensam em caminhos para chegar ao gol. Se aquela for a mensurável, talvez seja preferível a derrota dos ‘fracassados’ do que a vitória dos outros.

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Júlio Cesar, depois do erro, fez três ou quatro defesas de cinema. Mas fala-se mais delas ou dele?

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Embora eu ainda não consiga descrever o que sinto em palavras (pelo menos não como eu gostaria), o que me ocorre é o seguinte: há uma relação muito forte, íntima, intensa entre o futebol e a vida vivida. Na verdade, o futebol é uma amostra micro, uma pequena representação, um retrato da arte de viver. Por isso, não basta saber de futebol: quem só sabe de futebol, nem de futebol sabe (Manuel Sergio). Essa citação, diga-se, é especialmente válida nestes dias.
Quem já sofreu derrotas da vida, derrotas no plural, sabe ao menos duas coisas: I) elas são formativas, elas nos formam e nos transformam; II) elas são parciais. Não existe uma derrota sequer que é eterna, nem mesmo a morte (se pensarmos que tudo o que não é vida é morte, a morte foi, portanto, superada pela vida que vivemos hoje). Basicamente, fiquei com a impressão de que o jogo escolheu jogar com o Fluminense, decidiu testá-lo, mas aquilo não seria eterno, no caso, não duraria 90 minutos. Em algum momento, como na vida vivida, haveria uma janela. Nessa janela, o Fluminense deveria reagir. Não com a técnica, com a tática, a posição, a ‘ordem’, nada disso: primeiro, seria uma resposta moral, uma resposta de valores (coragem, por exemplo). Depois, seria uma resposta encarnada (vinda da carne – também está no hino).
Acho que este Fluminense venceu aquele jogo não só porque sabe de futebol. Mais do que isso, de alguma forma, porque sabe da vida. Se não soubesse, teria se entregado.

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É claro que tudo isso se materializa no campo, na tática, na técnica, no físico, nessas coisas que não se separam. Daniel no lugar de Airton foi uma substituição que me surpreendeu, não pela coragem, mas porque Daniel estava ausente há algum tempo, e o garoto foi muito bem, trouxe outro tipo de apoio por dentro, o Fluminense passou a ser o Grêmio do primeiro tempo. Como na vida vivida, os papeis se invertem. Tudo o que não me mata, me fortalece, disse o Nietzsche. E é nossa obrigação interpretar os papeis que nos cabem (na vitória e na derrota) com respeito, com grandeza e mesmo com gratidão – quantos gostariam de estar ali e não estão?

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Minutos depois do jogo, já surgiram os discursos viralatistas, dos mesmos cães de sempre, que dizem que o jogo ‘não foi isso tudo’, que ‘faltou organização’, aqueles mesmos lugares comuns pseudomodernos. Que não aparecem, por exemplo, quando há um jogo de sete ou mais gols em qualquer liga europeia de elite. Ou não apareceram no quarto gol do Liverpool contra o Barcelona, em Anfleid.
Veja bem, é claro que não quero fazer comparações neste sentido. A questão, amigos e amigas, é que nos habituamos, ao falar do futebol brasileiro, ao copo meio vazio. Mas muitas vezes não é só o copo, a crítica também é vazia, especialmente aquela, herdeira de uma certa miséria intelectual, que se acha na condição de julgar e atacar treinadores e treinadoras, dos mais diversos níveis, sem que se tenha um mínimo entendimento do que significa ser treinador. Não existe um jogo de sete, oito ou quarenta gols sem erros defensivos, da mesma forma que não existe um jogo de futebol sem erros defensivos, da mesma forma que não existe jogo sem erros, da mesma forma que, repare bem, não existe uma vida sequer livre de erros (ou esses mesmos ‘analistas’ têm vidas perfeitas, moralmente irretocáveis?).
Como crianças que se habituam a um brinquedo apenas, formamos uma certa geração que só sabe brincar com um brinquedo, o brinquedo europeu ocidental das divisões de elite, e todos os brinquedos que escapem ao seu são feios, ‘assimétricos’, não têm ‘ordem’, não têm ‘método’. Mas qual é a contribuição deste discurso para o futebol brasileiro? Este é um futebol distante da perfeição, há um caminho enorme a ser desbravado, inúmeros avanços no horizonte, mas se um crítico quiser ser respeitado, talvez seja preciso se dar ao respeito também.

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O jogo foi um só, os olhares foram vários. Ao meu ver, existe um certo tratado moral ali. Há coisas ali sobre o futebol e sobre a vida – elas não se separam. Assim as coisas são esculpidas.
Enquanto isso, nós vamos nos esculpindo daqui também.
 

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