Entre para nossa lista e receba conteúdos exclusivos e com prioridade
Entre para nossa lista e receba conteúdos exclusivos e com prioridade

Jorge Jesus: o exímio treinador cujo tempo chegou. (Foto: Reprodução/Trivela)

 
Disse em outras oportunidades e reafirmo: o futebol é prática da vida. Ou seja, o futebol que se joga, o jogo jogado, está intimamente ligado à vida que se vive, às nossas palavras e ações, ao mundo que se desenha ao nossos olhos e que também é formado e conformado, de acordo com a nossa vontade.
Ainda não sei se as palavras que temos são suficientes, mas repare que daqui sai uma linda relação entre a condição humana e nossa condição como treinadores e treinadoras. Existe por aí uma conversa meritocrática, uma conversa que acredita que tudo é possível, que tudo é alcançável, e que se alguma coisa não se realizou ou não foi alcançada, é porque não trabalhamos o suficiente. Ou seja, existe uma crença, mais do que internalizada, de que é possível conformar o mundo ao nosso prazer, ao nosso saber, ao nosso poder, às nossas vontades (tiro este trecho do maravilhoso pensador que é o Jorge Larrosa). Se as coisas não nos acontecem, é porque nosso saber, nosso poder e nossas vontades não foram suficientes, portanto é preciso trabalhar mais e trabalhar melhor. Não surpreendem, aliás, os enormes índices de esgotamento físico e mental que há por aí, em todo o lugar.
Mas se digo isso é porque, vocês haverão de convir, também existe uma crença, mais do que cristalizada, de que é possível conformar o jogo jogado ao nosso bel prazer. Por este raciocínio, treinadores e treinadoras seriam domadores, como ventríloquos que controlam, sutilmente o jogo jogado. Por este raciocínio, o resultado de um determinado jogo, ou mesmo o comportamento de uma dada equipe ao longo do tempo (às vezes, um tempo muito curto) é resultado especialmente do saber, do poder e das vontades do treinador, e se uma dada equipe não vence, ou não convence (o que está mais próximo dos olhos de quem vê), ou convence menos do que poderia, ou às vezes convence até demais, então rapidamente alguém faz um diagnóstico, que geralmente tem a ver com o saber, com o poder, com as ideias (palavra que se usa, às vezes equivocadamente), com o método (idem) ou com as vontades do treinador. Só que o tempo do futebol está cada vez mais rápido, cada vez mais curto e, especialmente no rendimento, é comum que não haja tempo para trabalhar mais e melhor. É mais fácil, neste raciocínio, trocar de treinador. Ou reciclar o processo, como dirão em breve aqueles que tratam treinadores como resíduos quaisquer.
Sendo o tempo do futebol muito curto e muito rápido, é comum que haja conclusões muito rápidas e, não por acaso, muito curtas – ainda que o futebol seja largo. Por exemplo, não é adequado dizer que ‘treinadores brasileiros não estudam’. Na verdade, é uma frase terrível. Para não gastar os dedos, ficarei apenas neste ‘treinadores brasileiros’: é um termo terrível porque generaliza, a partir de uma amostra mínima (geralmente treinadores da Série A, avaliados especialmente pelos resultados) uma classe que é ampla e diversa, que passa por uma certa transição geracional, que ainda tenta equilibrar um certo saber empírico, que desenvolvemos historicamente, ao saber científico, que também fazemos muito bem (embora não se saiba o que se produz nas universidades brasileiras), mas uma classe que não é só rendimento, que é iniciação, especialização, participação. Evidente que uma classe que distante da perfeição, mas que é muito mais do que o jogo televisionado do fim de semana, uma classe que acaba respondendo pela frágil crença de que uma equipe é somente resultado de causa/efeito dos saberes, dos poderes e das vontades do treinador.
(neste assunto, uma pergunta mais adequada seria: que condições estruturais diferenciam a formação dos treinadores portugueses, por exemplo, dos treinadores brasileiros? Uma das hipóteses: a relação das federações com as universidades)
Para sentir que não é daquilo que se trata, basta olhar-se no espelho: será que as nossas são produto puro do nosso saber, do nosso poder e da nossa vontade? Ou será que vamos respondendo, na medida do possível, às demandas do trabalho, aos problemas da família, às condições materiais (às vezes limitadas), ao nosso passado, aos nossos desejos, às coisas e pessoas que nos chegam para além da nossa vontade, às coisas e pessoas que se vão? Pois é precisamente disso que trata o jogo, e não é preciso ter lido Huizinga ou Caillois, não é preciso que saibamos que o jogo se faz pelo seu caráter imprevisível – especialmente se jogo coletivo de invasão – que se faz pela criação de novas ordens a partir do caos (Teoria dos Sistemas Dinâmicos), pela complexidade do tecido do jogo, não é preciso nada disso, basta uma sessão de treinos, às vezes um só dia à beira do campo, para saber que mesmo as melhores metodologias, mesmo os mais profundos conhecimentos, mesmo as melhores equipes de trabalho, nas melhores condições materiais, nas condições próximas das ideais, podem dar outro resultado, ou podem dar resultados extraordinários e as conclusões, em ambos os casos, precisam ser muito cuidadosas, pois para sintomas idênticos pode haver diagnósticos mil. E não estamos em tempo de errar.
Fazendo isso, talvez nos venham três coisas: que podemos saber mais e melhor, que sabemos mais e melhor do que sabem sobre nós, mas que o saber, o poder e a vontade podem não ser o suficientes.
A vida está além disso.
 

Compartilhe

Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp
Share on email
Share on pinterest

Deixe o seu comentário

Deixe uma resposta

Mais conteúdo valioso