Cartas para um futebol humanizado – #01

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Crianças correm atrás da bola: quantos mundos há num jogo de futebol? (Foto: Divulgação/ Reprodução:Dallas Parks Foundation)

 
Tenho comentado aqui já faz um tempo sobre a centralidade do processo de humanização do treino/jogo. Sobre isso, já escrevi algumas colunas, que vocês podem encontrar nos arquivos. Vou fazendo abordagens diferentes, mas que acabam tendo um mesmo pano comum, que são tecidas juntas (a origem da palavra complexo, cada vez mais comum no nosso vocabulário no futebol, é exatamente essa, aquilo que é tecido junto).
Também percebo que existe alguma dificuldade de perceber o que significa fazer essas coisas na prática – ou pelo menos nisso que entendemos como prática. Ao mesmo tempo, é uma ansiedade que me parece desnecessária. Vamos conversando por aqui e, nos tempos certos, encontramos as nossas formas de avançar.

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Bom, a primeira coisa que me ocorre é a seguinte: seja no futebol de iniciação, seja na especialização ou mesmo no rendimento, acho bastante claro que estamos falando de um processo pedagógico. Se pensarmos a Pedagogia como a ciência da educação, então entendemos um pouquinho mais o sentimento de que o futebol é uma prática educativa e, ao mesmo tempo, é uma prática humana. O que significa que lidamos com educação (ou seja, temos um caminho não apenas tático, técnico, físico e etc, mas um caminho pedagógico) e que lidamos com a educação de seres humanos – o que também é bastante particular.
Me permitam me estender um pouquinho mais neste sentido, porque o fato de lidarmos com seres humanos (novamente, seja na iniciação esportiva, no processo de especialização ou com atletas de rendimento) tem algumas implicações muito particulares. Quando falamos de pessoas, estejam elas jogando futebol ou não, falamos de sujeitos que se diferenciam dos outros animais através das palavras (lembrem-se do Aristóteles, humanos são viventes dotados de palavras) e que, portanto, são capazes de atribuir sentido a tudo o que lhes acontece a partir das palavras. Da mesma forma, como profissionais do futebol, precisamos ter claro que as palavras são como flechas: elas podem tanto chegar aos alvos certos, quanto podem chegar aos alvos errados e inclusive ferir os alvos (e as pessoas) erradas. Na Grécia Antiga, por volta do século IV a.C., na transição para o período socrático da Filosofia, já era corrente considerar que as palavras podiam ser tanto remédios quanto venenos – tudo dependia do uso e da dose.
Quando penso no processo de humanização, penso bastante fortemente no peso das palavras, no significado das palavras (que é e sempre será diferente para cada um, o que significa que o que dizemos não é e não será o que o outro entenderá sobre o que dissemos – essa batalha está posta) mas, especialmente, no poder das palavras ao longo do processo de formação. Isso significa que um caminho que podemos considerar é estimular os atletas, em quaisquer níveis, a dar sentido às coisas que lhes aconteceram no processo de treino/jogo, assim como também nós, como treinadores e profissionais do futebol em geral, vamos dando sentido às coisas regularmente, com continuidade – e isso acontece exatamente pelas palavras. Porque se fizermos isso, damos um grande passo no seguinte sentido: as coisas não são como parecem, as coisas são o que fazemos delas. Ou, se você preferir: o problema não está exatamente na derrota, ou exatamente no treino, ou exatamente nas relações, ou exatamente no mundo, mas o problema está no sentido que damos à derrota, ao treino, às relações e ao mundo. O que fazemos com o que as coisas nos fazem nos diz, basicamente, quem somos e quem seremos no futuro.
Ou seja, um processo de humanização do treino/jogo é um processo que entende que lidamos com seres humanos, que sendo humanos estão em contínua formação (ou seja, não apenas podem mudar, como estão em mudança constante, ainda que nem eles ou nem nós mesmos percebamos), que sendo humanos são limitados, conseguem fazer e saber algumas coisas, mas não conseguem fazer e saber de todas as coisas (ninguém consegue). Não se pode esperar de humanos um comportamento de máquina, uma performance de máquina, uma eficiência de máquina, não apenas porque humanos não são máquinas (e não são coisas), mas também porque as máquinas, via de regra, são inteligentes para coisas muito específicas – e burras para todo o resto. Uma máquina pode processar vários terabytes de informação num tempo muito curto, mas não pode olhar os olhos nem sentir os sentidos de si mesmo ou de alguém. Máquinas, pelo menos por ora, não têm afetos, não sabem sentir, e é nisso que também reside a importância e a particularidade do humano.
Quando pensamos em modelo de jogo, em estruturas/sistemas de jogo, nesses debates posição/função, quando pensamos em blocos altos, médios e baixos, em metabolismo anaeróbio alático, anaeróbio lático e aeróbio, nas capacidades físicas, em força estática, dinâmica e em potência, quando pensamos na glicólise ou na gliconeogênese, quando pensamos no reto femoral ou no vasto lateral, quando pensamos nessas coisas todas, acho que devemos nos acostumar não a fazê-las antes de pensarmos no humano, mas depois. Todas essas coisas existem porque, antes delas, existe um ser vivo, consciente, potencialmente autônomo e livre, em movimento constante.
E talvez o processo de humanização do futebol seja, basicamente, um processo de nos entendermos como os humanos que somos. Na grandeza e nas limitações da nossa própria humanidade.
 

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