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Uma bola e uma parede: quantas possibilidades (e complexidades) saem dali? (Foto: Reprodução/USA Today)

Na última semana, conversando com um atleta que treina comigo, chegamos em um ponto muito interessante, que gostaria de compartilhar com vocês na coluna de hoje. Basicamente, conversávamos sobre o jogo de paredão, sobre as possibilidades pedagógicas do paredão, e lá pelas tantas chegamos a um ponto em comum, sobre o qual eu escrevo melhor na segunda parte deste texto.
Aqui, gostaria de conversar um pouco sobre duas coisas: primeiro, sobre uma certa ideia de complexidade e, depois, sobre uma possibilidade pedagógica específica do paredão.

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Em primeiro lugar, um dos motivos por que me agrada muito o jogo de paredão está justamente nisso que podemos chamar de simplicidade. Para brincar de paredão, precisamos apenas de uma parede e de uma bola. Quando pequenos (e mesmo quando mais velhos), todos nós jogamos bola com a parede em algum momento. Eu mesmo, quando garoto, adorava fazer meus campeonatos, a cada lance fazendo um jogador diferente, atacante quando a bola ia e goleiro quando a bola voltava, às vezes um jogador brasileiro, às vezes estrangeiro, e aí já vão nos ficando claras a potência e os caminhos para onde o mundo do jogo pode nos levar.
Mas não vamos perder o fio: a priori, o paredão parece um jogo muito simples. Mas, na verdade, não o é. Vejam bem, uma das palavras mais repetidas pelas recentes gerações de treinadores e profissionais do futebol (porque de fato é uma das palavras que mais nos foram faladas na última década) é a palavra complexidade. O que eu não sei é se é uma palavra muito bem digerida. Complexo, como vocês sabem, vem do latim complexus, significa aquilo que é tecido junto. Ou seja, a complexidade não está exatamente na dificuldade de um determinado problema (como se as coisas mais complexas fossem simultaneamente as mais difíceis), mas sim nas relações entre as partes desse problema. No caso do futebol, por exemplo, um determinado jogo não é complexo porque é mais difícil, mas é complexo porque contempla, ao mesmo tempo, as várias dimensões do jogo (tática, técnica, física, psicossocial). Aliás, essa é uma vantagem indiscutível do jogo enquanto método, na comparação com os treinos analíticos, por exemplo.
Neste sentido, pensem comigo o seguinte: jogar paredão pode ser simples (pelo senso comum), mas na verdade pode ser extremamente complexo. Ou melhor, o paredão é um jogo complexo com a aparência da simplicidade. Porque, jogando com a parede, eu trabalho simultaneamente uma dimensão técnica (por motivos óbvios), uma dimensão tática (porque preciso gerir o espaço para cumprir ações técnicas), uma dimensão física (porque estou em movimento e com bola, fazendo deslocamentos frontais e laterais, podendo subir ou baixar a intensidade) e uma dimensão mental, proporcional ao desafio que me proponho no jogo (passar a bola em cinco toques pode ser simples, mas passar a bola em apenas um toque, com o pé não-dominante e sem deixar a bola quicar, pode fazer um jogador qualquer se sentir o pior jogador do mundo, de modo que existe uma psicologia ali, como existe em qualquer outro lugar).
Então este é o primeiro ponto que gostaria de colocar: o complexo pode estar no simples, o complexo deve ser visto como sinônimo de difícil e, mais do que isso, o complexo (enquanto sinônimo de difícil) não deve ser visto como melhor – porque de fato pode não sê-lo. Na montagem de uma sessão de treino, por exemplo, fazer um treino complexo não significa, necessariamente, escolher jogos hiper complicados, cheios de alvos e regras de difícil compreensão. Pelo contrário, do ponto de vista pedagógico, os melhores jogos costumam ser os mais simples.

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A segunda coisa que gostaria de dizer tem a ver lá com o começo do texto. Conversando com esse meu atleta, ele me disse uma frase, que na verdade não vou me lembrar ao certo, mas que faz todo o sentido. Foi algo próximo do seguinte: no paredão, a bola volta do jeito que vai – não tem segredo.
Não sei vocês, mas eu enxergo até uma certa poesia nisso. Do ponto de vista pedagógico, essa ideia é particularmente interessante, e por um motivo especial. Em pequenos jogos, especialmente com um certo número de jogadores (digamos de quatro em diante), podemos muito bem terceirizar as responsabilidades pelos nossos insucessos. Podemos jogar mal e dizer que o problema foi um companheiro nosso, ou foi um adversário nosso, ou foi o árbitro que estava mal intencionado, ou foi a bola que estava redonda demais e etc etc. Assumir as próprias responsabilidades é um aprendizado que, às vezes, vem com o tempo (ou, como a vida nos mostra, às vezes não vem).
No caso do paredão, não bastasse esse viés da parede como espelho (ou seja, ela reflete precisamente a qualidade do nosso passe, ou do nosso chute), existe também essa dimensão educativa, da responsabilidade que nos cabe, da impossibilidade de fugir da raia. E aqui voltamos ao lugar onde havíamos começado, na complexidade que pode haver num jogo tão simples, porque para muito além de chutar uma bola na parede, podemos criar inúmeras variações, que nos permitam avançar em todos os aspectos do jogo, e que, para muito além disso, nos permitam avançar além do jogo, nos permitam ir mais longe do ponto de vista humano – desde que nós mesmos nos demos a permissão de enxergar essa possibilidade. O paredão ou qualquer outro jogo não tem apenas um valor em si, mas tem um valor dependente do sentido que damos a ele. Isso faz toda a diferença.
Nos jogos que jogamos e, tecido junto!, na vida que vivemos.

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PS: nenhuma vida é dispensável. Pandemias não existem no diminutivo. Se possível, fique em casa. Cuide da própria saúde e da saúde dos outros.
 

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