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Hungria de 1954: em parte, nascida da reflexão sobre os saberes disponíveis. (Foto: Reprodução/Divulgação: goal.com/Getty Images)

 
Outro dia, o Jonathan Wilson (que escreveu, dentre outros livros, o conhecido ‘A Pirâmide Invertida) publicou um artigo interessante, no qual ele discute, desde o título, como a quarentena oferece um tempo fundamental para a inspiração de treinadores e treinadoras. Ele cita como exemplo Marton Bukovi, treinador húngaro do século passado, que teria criado o que chamamos hoje de falso nove justamente durante a Segunda Guerra Mundial.
Para muita gente, este é um período de atualização, ou mesmo de reciclagem. Sinceramente, não sou muito chegado no verbo atualizar (porque nem eu e nem vocês somos softwares), assim como não sou muito chegado no verbo reciclar – nem eu e nem vocês somos resíduos. Das palavras disponíveis, embora me agrade falar de inspiração, também acho que podemos falar de reflexão. Este é um período em que podemos muito bem refletir sobre os nossos saberes profissionais, sobre as coisas que nós sabemos e, principalmente, sobre as coisas que não sabemos (que são em maior número, afinal).
Deixem-me falar um pouco melhor sobre isso.

***

Na minha pesquisa de mestrado, que estou prestes a terminar, tenho estudado justamente o processo de construção das filosofias de treinadores de futebol. A meu ver, este período de quarentena permite exatamente isso, refinar as nossas próprias filosofias. Assim como um carpinteiro talha a madeira, às vezes indefinidamente, em busca da perfeição, me parece que assim devemos nós tratar as nossas próprias filosofias. Aliás, este é um dos motivos porque tenho usado a palavra filosofias, no plural: estou convencido de que não é um processo singular, que uma filosofia estática e fechada não dá conta da complexidade da vida e que a construção de filosofias profissionais anda de mãos dadas com a vida que se vive, o que significa que, enquanto há existência, haverá filosofias.
Como filosofia, tenho adotado um conceito apresentado pelo francês Andre Comte-Sponville, na introdução de um livro chamado Apresentação da Filosofia. Ele diz, textualmente: ‘A filosofia não é uma ciência, nem mesmo um conhecimento; não é um saber a mais: é uma reflexão sobre os saberes disponíveis. É por isso que não se pode aprender filosofia, dizia Kant: só se pode aprender a filosofar.’
Me parece que com esse conceito podemos ir longe. Chamo a atenção, especialmente, para essa parte que diz que fazer filosofia não significa saber a mais. Basta olharmos à nossa volta (e olharmos no espelho) e veremos o quão ávidas e ansiosas as pessoas estão para saber cada vez mais, como se os saberes que nós carregamos conosco sempre fossem inadequados e insuficientes, mas também como se funcionassem como uma conta bancária, que será (supostamente) tão melhor quanto mais zeros tiver. Mas, na ânsia de acumular conhecimentos, nós nos esquecemos, como escreveu certa vez o Nietzsche, dos riscos da taça que acumula demasiado mel. Ou, se você preferir uma analogia do Schopenhauer, brilhantemente colocada no livro A Arte de Escrever, de nada adianta empanturrar-se de conhecimentos (de futebol ou de qualquer outra coisa) se não nos dermos o direito de digerirmos. A comida mal digerida pouco acrescenta ao corpo. As leituras mal digeridas, ou que não degustamos com a devida atenção, não nos fazem nada, saímos delas do mesmo jeito que entramos. A quantidade não basta.
Digerir, neste caso, pode muito bem significar refletir. Mas de novo, não é exatamente refletir sobre coisas novas, mas fazer como novas as coisas que estão mofando em nós mesmos: refletir sobre os saberes disponíveis! Neste período podemos retrucar a nós mesmos, encontrar as lacunas do nosso próprio modelo de jogo, dos nossos próprios métodos de treinamento, das nossas próprias análises de desempenho, das nossas próprias relações com os atletas e os profissionais que nos cercam. Se você preferir (e aqui recorro novamente ao Nietzsche, numa alusão que está no livro Sociedade do Cansaço, do Byung Chul-Han), este momento, na medida do possível, permite a contemplação, exercer a vida contemplativa, suspender os pensamentos. Não um momento de produtividade doentia, não um momento de explorarmos a nós mesmos, não é disso que se trata: é um momento em que, aos que podem, é dado do direito de parar, sentir a passagem do tempo, sentirmos a nós mesmos e, exatamente por isso, refletirmos sobre as coisas que sabemos e – de novo – sobre as que não sabemos. Outro dia, lendo um ótimo artigo do professor Desidério Murcho, me senti persuadido a admitir que, do ponto de vista lógico, é claro que as chances de estarmos equivocados sobre qualquer assunto são bem maiores do que as chances de estarmos inteiramente certos – não existem argumentos irrefutáveis, afinal.
Assim como vários colegas, tenho aproveitado as horas livres para assistir alguns jogos antigos. Outro dia mesmo, assisti a Real Madrid x Barcelona (2×6), de 2009, o jogo em que Lionel Messi foi de fato apresentado ao mundo como… falso nove! É muito interessante perceber não apenas o estrago que os seus movimentos fizeram na defesa do Madrid, especialmente nos zagueiros (Cannavaro e Metzelder, salvo engano meu), mas também como mesmo o jogo de posição mais ortodoxo talvez precise de pelo menos uma ponta solta, de um elo livre que circule por diversas alturas do campo, criando superioridades no setor da bola e atraindo a marcação para espaços valiosos. Talvez o exemplo definitivo disso esteja precisamente num outro jogo do Barcelona, a final da Champions League de 2010/2011, contra o Manchester United, em que o FCB jogou num nível de fato superlativo e Messi transitava tranquilamente por zonas muito mais baixas do campo.
Mas perceba que assistir jogos ou lives nas redes sociais, ou ler outros livros e artigos, ou escrever outras coisas, não precisam ser atividades que fazemos para empilhar conhecimentos. Devemos fazer nos relacionando com as coisas, construindo ativamente, de criarmos afinidade com o jogo a que assistimos, o livro que estamos lendo, as coisas que escrevemos, o modelo que construirmos (que nunca estará pronto), os nossos comportamentos em transição defensiva, os nossos procedimentos de recuperação e prevenção de lesões, enfim: não é uma questão de saber mais, é uma questão de saber melhor. Saber melhor sobre os saberes que não sabemos, mas também e especialmente saber melhor sobre os saberes que já sabemos – são esses os que nos dão as maiores rasteiras.
Por fim, reparem como este tempo de pausa no futebol escancara as bizarrices dos calendários em geral. Não é possível exigir do profissional do futebol que tenha tempo e condições de refletir com qualidade quando há jogos em cima de jogos, viagens em cima de viagens, críticas em cima de críticas (via de regra, sem muito fundamento). Some a isso o fato de que profissionais do futebol (e do esporte, em geral) são pessoas absolutamente normais, com uma vida normal, com família e amigos e responsabilidades particulares, e é claro que as horas do dia não serão suficientes para pensar com qualidade (e isso não se restringe ao futebol, diga-se) No calendário, segue a lógica da digestão, de que falamos acima: estamos empanturrados e comendo.
E a indigestão, como se sabe, talvez não seja exatamente amiga da inspiração.
 

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