Sobre os jogos do passado e o risco do anacronismo

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O Brasil de 1970: um desses times para muito além do anacronismo. (Foto: Divulgação/Reprodução: Daily Maverick)

 
Outro dia, no meu perfil numa dessas redes sociais, escrevi rapidamente sobre este hábito, especialmente cultivado em razão da quarentena, de analisar jogos antigos, de clubes e seleções. É uma questão não exatamente problemática em si: pelo contrário, eu mesmo tenho assistido e produzido algum material sobre alguns desses jogos. Até porque, como disse o Ángel Cappa, treinador argentino, citado lá no Pep Guardiola: A Evolução, “o futebol do futuro está no passado”.
É claro que uma frase dessas acaba sendo capciosa, porque pode sugerir um certo saudosismo – o que não é verdade. Os que leem as coisas que eu escrevo sabem que, a meu ver, muito disso que se chama, às vezes com uma certa ansiedade, de ‘futebol moderno’, pode ser menos ‘moderno’ do que parece, menos ‘evoluído’ do que parece. Pode ser uma mera aparência, uma ressignificação própria deste tempo, às vezes refém de interpretações potencialmente equivocadas. É aqui, aliás, que gostaria de traçar alguns limites nessas análises de jogos do passado.
Basicamente, há dois riscos muito evidentes nessas aventuras: vamos chamar o primeiro problema de problema da profundidade. E vamos chamar o segundo problema de problema do anacronismo. Eles não estão separados.
No caso do problema da profundidade, o que fica subentendido (ou, às vezes, o que é dito literalmente) é que não havia muito conhecimento e, portanto, não havia muita ‘profundidade’ nas análises e no entendimento do futebol que se tinha no passado – como se tudo o que se disse e tudo o que se fez fosse apenas um amontado de crendices e superstições, que não teriam nenhuma validade hoje em dia. Ao mesmo tempo, também fica subentendido que a nova geração de analistas, treinadores e profissionais do futebol em geral, da qual nós supostamente fazemos parte, essa sim estaria preparada com ferramentas adequadas de conhecimento, seria capaz de enxergar mais e melhor do que os ‘antigos’ e, portanto, teria mais ‘profundidade’ no entendimento do jogo em comparação a um passado não muito distante.
Sinceramente, é um raciocínio que me soa pretensioso e absurdo em muitos níveis. Mas gostaria de chamar a atenção especialmente para um ponto: uma das grandes diferenças no processo formativo das novas gerações que trabalham com futebol talvez esteja nisso que chamamos de processos formais de ensino-aprendizagem. Hoje, tanto treinadores quanto analistas de desempenho, preparadores físicos, gestores, jornalistas e curiosos têm à sua disposição cursos e mais cursos formais, nos quais geralmente há uma literatura disponível para pesquisa, registros escritos do que se pretende discutir. Num passado recente, há cerca de vinte anos, isso não era uma prioridade, o saber de treinadores e profissionais em geral era, via de regra, um saber da experiência. O que fica subentendido em algumas dessas análises que não me descem muito bem é que os saberes formais são muito mais importantes e significativos do que o saber da experiência, e que aqueles que se baseiam nas próprias experiências seriam, automaticamente, exemplos de ‘atraso’ e de ‘superficialidade’ (um equívoco enorme, mas não vou me alongar neste ponto por aqui).
É justamente a pretensão decorrente de um ou outro processo formal de aprendizagem, associada com uma certa ansiedade profissional (de mostrar, o mais rápido possível, que não fazemos parte do grupo dos ‘atrasados’), que faz aparecer o segundo problema, que é o problema do anacronismo. Basicamente, o sujeito anacrônico é aquele que alimenta expectativas e projeta cenários de uma dada época para outra. E quando não as encontra, julga a outra época a partir da régua do seu próprio tempo. Isso fica claro quando se diz, por exemplo, que uma equipe X era ‘desorganizada’, que uma equipe Y ‘não tinha amplitude’ ou que um atleta Z foi profissional numa época em que ‘era mais fácil jogar futebol’. É claro que o sujeito que assiste regularmente ao futebol de hoje pode sentir-se desconfortável ao assistir um jogo antigo, como um jovem guitarrista de hoje em dia talvez ache lenta uma melodia do Jimi Hendrix, ou um jovem cineasta ache enfadonho um filme do Ingman Bergman. Mas o problema não está no jogo, nem na música, nem no filme: está no vício adquirido pelos nossos olhos, pelos nossos ouvidos e pelo nosso corpo, demasiado acostumados a certos estímulos, e incapazes de simplesmente apreciar os outros sem julgá-los (erradamente) pela régua do nosso tempo.
Aqui, aliás, está um ponto bastante central, que posso até retomar em breve: é preciso um certo cuidado para não transformarmos impressões subjetivas em supostas verdades absolutas (exemplo: o ‘futebol antigo’ era mais ‘lento’). Se defendermos, como parece que queremos defender, uma superação disso que chamamos de inatismo e disso que chamamos de empirismo, se queremos realmente investir em métodos e pedagogias baseadas nisso que chamamos de interacionismo, então precisamos considerar que o conhecimento se faz na inter-ação, na relação sujeito/objeto, de modo que o olhar e a ação dos sujeitos não devem ser ignorados, mas são determinantes na construção dos nossos conhecimentos. Daí que seja um absurdo, aliás, sugerir que o futebol deve se apoiar somente na ‘objetividade’ – é um entendimento deturpado do que significa construir conhecimento e, na mesma esteira, das atribuições humanas na articulação de conhecimento numa sociedade encharcada de informação, como é a nossa.
Mas sobre isso, falamos em breve.
 

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