‘Quem sabe só de futebol, ainda não sabe de futebol’ – Manuel Sergio
A vida, esse emaranhado de incertezas, possui duas certezas: a primeira é a morte física e a segunda, enquanto a primeira não vem, é a interdisciplinaridade.
O futebol, então, enquanto uma das representações de vida, é interdisciplinar. Podemos – devemos – debater sua condução, as condições com que são exploradas e o quanto, de fato, o discurso é levado a cabo, mas, assumindo o risco da afirmação generalizadora, suponho que mesmo aqueles ou aquelas que gostem de incutir rótulos aos profissionais esportivos – fulano é ‘ultrapassado’, ciclano é ‘retrógrado’ – terão certa dificuldade em escutar deles uma ode declarada ao obscurantismo.
Primeiro porque, no futebol, a interdisciplinaridade está posta. Demos, porém, um passo atrás: negar a fisiologia, a biomecânica, a nutrição, a psicologia, a análise de desempenho, bem como a influência de disciplinas outras no ensino, treinamento, vivência e aprendizagem do esporte-bretão parece um erro, um abraço fraterno ao insucesso profissional. É bem possível que soe óbvio, mesmo para os e as que projetam o mundo de forma cartesiana, difícil negar a importância das partes – até porque, para esses e essas, dá soma delas é que se constitui o todo.
A nem tão simples ‘mudança de chave’ – eufemismo para rompimento de paradigma – de um olhar para as relações mais linear e técnico, para outro, não-linear e complexo, pode contribuir à percepção de que diferentes áreas do conhecimento e disciplinas, como as citadas no parágrafo acima, por exemplo, interagem entre si e não é de hoje. Eis, aí, a interdisciplinaridade, importantíssima para entendermos as nuances das (infinitas) transformações das relações humanas, do próprio jogo e estruturarmos o passo adiante rumo à transdisciplinaridade, a que estudiosos como o Prof. João Paulo Medina tem se referido há um tempo – conversa que esmiuçaremos em próximas oportunidades.
Segundo porque, mesmo em tempos de tosca resistência anti-iluminista, assumir-se como profissional esportivo de excelência carregado de tradicionalismos por aqui (sem levar em consideração a cultura sebastianista do torcedor ou torcedora passional, de culto cego ao futebol-raiz) sobretudo no pós-sete a um, já não pega tão bem assim – ao menos no discurso, não bastasse a contradição. O futebol mudou porque o mundo também mudou, e se modifica a todo momento. Quem não busca adaptação às dinâmicas emergentes corre grande risco de sucumbir profissionalmente, mesmo que não admita outros tipos de transformações sociais. Permitam-me o trocadilho: é o fenômeno do conservador ou conservadora nos costumes e liberal no futebol – pretendemos explorar bastante essas e outras contradições por aqui.
Ainda que tenha sublinhado a psicologia algumas linhas acima, a resistência às ciências humanas, para que seja concebida sob a interdisciplinaridade, perdura no futebol e, porque não dizer, na Educação Física, tida como prática demais para ser influenciada por teorias tidas como rebuscadas demais. As vivências do chão de quadra e à beira do campo compensariam as densas perfumarias filosóficas, afinal. Mostra de que os caminhos para o corte epistemológico, falado há décadas pelo Prof. Manuel Sérgio, que trata da transposição do futebol como atividade física para atividade humana, não está tão pavimentado assim.
E para melhor entendimento de uma atividade humana, dá-lhe ciências humanas, certo? Mas para que essa relação faça sentido é preciso oferecer, ora bolas, sentido. E é aí, que peço para que a Pedagogia tire o colete, faça rapidinho o aquecimento para entrar e mudar o jogo. Qualquer jogo. Não falo só do rachão no ambiente escolar ou o bobinho nas escolinhas especializadas, mas nos contextos competitivos e de altíssimo rendimento. Onde há gente, existe pedagogia.
Partimos, assim, do pressuposto de que a Pedagogia é uma ciência educativa, que se reflete por método(s) e didática(s) para que, a partir de uma ou várias intencionalidades, as pessoas sejam tocadas e pensem, sintam e ajam melhor. E, aplicada ao futebol, também joguem, treinem melhor e, não menos importante, aproximem formas de pensar o mundo e o jogo distintas. A pluralidade de ideias toleráveis é o que dá tempero às relações humanas, afinal.
Quando evocamos o filósofo Edgar Morin para falar da noção de complexidade, as obras do psicólogo Urie Brofenbrenner que aludem à teoria ecológica ou as do físico Thomas Kuhn, que aborda a filosofia da ciência e o paradigma científico emergente, a Pedagogia é imprescindível para que essas brilhantes ideias tenham significado à realidade do profissional do futebol, esteja ele ou ela na Série A do Brasileirão ou no projeto voluntário do bairro periférico. É preciso, evidentemente, empenho e disposição para o novo e o novo nem sempre é cômodo – e nem deveria ser – bem como empatia e compromisso com o real e o social da parte de quem administra o ambiente formativo sem fazer do processo educativo algo superficial ou encastelado demais.
Por esse entendimento, nos parece importante inferir a Pedagogia, sob a égide da cada vez mais relevante subárea da Pedagogia do Esporte, como indispensável ao futebol. Vou além: a Pedagogia é, senão, a própria interdisciplinaridade, na medida em que se compromete com o diálogo entre dissemelhantes, mobiliza saberes de diversas fontes, admite sincretismos e minimiza dualismos entre a teoria e a prática, o ‘boleiro’ e o acadêmico, o reativo e o propositivo, a competição e a participação, a técnica e a tática, sem desconsiderar suas especificidades.
Seria, da parte deste que vos escreve neste espaço pela primeira vez, presunçoso demais dizer que as ciências humanas (com a Pedagogia inclusa) por si só, dá sentido à vida – e ao futebol – mas que ajuda a cada um de nós encontrar o seu, isso ajuda. Agora são três certezas, desconfio