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Crédito: Marcello Casal Jr/ABr

Bom, já conversamos algumas vezes sobre o quanto o processo de treino caminha junto do processo de ensino e do processo de aprendizagem. Ou seja, de fato há muitas semelhanças entre treinadores/treinadoras e professores/professoras. Isso me parece bastante positivo, uma vez que não apenas nos ajuda a pensar sobre as pontes que inevitavelmente existem entre diferentes profissões, como também nos faz perceber que, para ser treinador ou treinadora, é preciso um certo tipo de saber, do ponto de vista pedagógico – seja ele intuitivo ou não.

Mas, isto dito, sinto que nós ainda temos alguns palpites perigosos quando pensamos no tipo de sentimento que os nossos processos de treino devem despertar. Inclusive, porque hoje se reproduz velozmente este discurso próximo do que se entende por educação centrada no aluno ou, no caso do futebol, da educação centrada no atleta. Não raro, este mesmo discurso transita para uma outra coisa, próxima disso que se tem chamado de desenvolvimento positivo, algo razoavelmente difundido nos círculos acadêmicos – mas que não é exatamente o que me interessa aqui. O que me interessa é o seguinte: por que raios o treino, centrado no atleta, precisa ser legal? Quem disse que a educação ou o treino, para que sejam bons, precisam ser legais?

Este é um problema muito importante, porque não se separa de um debate fundamental, que é o das metodologias de treinamento. Pois, veja bem, talvez você concorde comigo que um processo de treino essencialmente técnico, baseado na técnica, principalmente na iniciação esportiva, parece ter outras preocupações que não o prazer. Na verdade, um processo essencialmente técnico tem, como uma das suas premissas, a noção de que a performance de um atleta depende especialmente do domínio de certas qualidades técnicas – geralmente chamadas de fundamentos. Embora também não seja o ponto deste texto, indico aos amigos um vídeo do amigo Lucas Leonardo, que discute muito bem os problemas de se pensar o treino de fundamentos – no futebol e em outras modalidades.

O que me interessa aqui é que existe, mesmo nos colegas que preferem metodologias mais próximas dos jogos (ou mais próximas da complexidade, daquilo que é tecido junto) uma ideia de que um dos motivos porque treinamos a partir de jogos, sejam eles pequenos ou grandes jogos, é porque é algo mais prazeroso, ou mais agradável, ou mais legal, ou qualquer outra coisa neste sentido – como se o processo de treino, ou como se própria educação, existisse apenas para ser prazerosa, agradável ou legal e, mais do que isso, como se o processo de treino e a educação existissem para gerar uma felicidade imediata, instantânea. Embora seja um pensamento corrente, talvez seja um pensamento muito problemático. A educação, veja bem, não deve ser um fardo, não existe para deixar a vida pior e mais triste, nós sabemos disso, mas isso também não significa que a educação (e o processo de treino) deva existir como ração de prazeres pequenos e imediatos, muito menos que deva existir somente para fazer aquilo que o aluno/atleta quer que seja feito: pelo contrário, a educação existe para fazer o que deve ser feito. E quem decide o que deve ser feito, pensando na formação do aluno ou do atleta no longo prazo, não é o aluno ou o atleta (que, se soubesse disso, não seria aluno): são justamente treinadores/treinadoras e professores/professoras. Repare como faz ainda mais sentido pensar nos treinadores como professores.

Jorge Larrosa, um filósofo que tenho lido bastante nos últimos tempos, tem um ótimo texto sobre isso, num livro intitulado El Profesor Artesano. Ali, ele defende a importância de uma educação livre, que não esteja presa a supostas obrigações de agradar o educando (especialmente quando a educação é paga – repare aqui nas escolinhas de futebol), mas sim de ensinar o que deve ser ensinado. Quando fazemos educação apenas de um ponto de vista utilitário, quando alunos/atletas são apenas clientes, a consequência imediata é que os alunos/atletas vão encarnar a noção de que a educação serve para agradá-los, que o mundo serve para agradá-los, e que portanto tudo aquilo que não os agrade na hora, de imediato, tudo aquilo que não seja prazeroso, agradável ou legal, deve ser imediatamente descartado. Basicamente, saem da sala de aula ou do treino entediados ou mesmo irritados, ainda que não verbalizem, porque não faz sentido quando o mundo não gira ao seu redor e não faz deles felizes no instante. Não é preciso ir muito longe para sabermos o quão absurdo isso pode ser.

Ao mesmo tempo, não perca de vista o que eu disse acima: o processo de treino não tem que ser monótono, chato, entediante. E, se me permite, não perca de vista que o processo de ensino e aprendizagem de um atleta não se resume ao treino. A nossa relação, enquanto treinadores e treinadoras (ou profissionais do futebol em geral) com os atletas precisa ser uma relação de desafio. A nossa função é causar um tremor, causar um incômodo, causar um certo tipo de fissura, algo parecido com o que sentimos quando lemos um livro muito bom, ou quando assistimos um filme ou uma série que nos tira o chão, ou quando conhecemos alguém muito interessante, que faz de nós outra pessoa além de nós mesmos. O atleta precisa se sentir estremecido, inquieto, desafiado. Por muitas vezes, isso vai sim significar repetição (contextualizada, mas repetição), disciplina, desconfortos físicos e emocionais, conflitos com os outros e consigo mesmo – e assim sucessivamente. A educação precisa ser desconfortável. Ao mesmo tempo, é justamente o desconforto do instante que permite um certo tipo de florescimento, que permite que se crie um outro mundo no médio prazo. Se quisermos nos sentir bons treinadores, pelo menos é como eu vejo as coisas hoje, não temos que nos preocupar em ficar fazendo coisas legais e agradáveis, como inclusive somos induzidos a fazer, mas temos que fazer o que tem de ser feito, dentro dos conteúdos que julgamos importantes (e não me refiro apenas aos conteúdos tático-técnicos), com as dúvidas que achamos pertinentes, com os desconfortos que achamos pertinentes, fazendo a roda rodar. E isso também significa, se me permitem, que podemos não ser tão queridos, pelo menos não de cara. Se queremos ser queridos por todos e por todas, aliás, talvez tenhamos aqui um problema razoável.

Vamos retomar este assunto num outro momento. Por ora, gostaria apenas de sugerir o quão prejudicial pode ser pensar no processo de treino como algo obrigatoriamente legal. Talvez isso não seja tão legal assim.

Seguimos em breve.

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