Este é o primeiro artigo de uma série que abordará o significado da rua como espaço público de educação, mais especificamente, de formação para a vida em cidadania, a vida coletiva, a vida política e social. O objetivo desta série é esclarecer as pessoas que circulam no campo da Educação Física e do Esporte para a importância de um tipo de educação que é, quando considerada, quase sempre subestimada. Falamos de um processo educativo que ocorre nas pequenas sociedades infantis, onde não há educação a cargo de pessoas adultas autorizadas, mas educação entre pares (crianças com crianças).
O empenho permanente dos seres humanos é constituírem-se humanos. Mas não bastaria aguardar a ação da natureza, cada qual desenvolvendo-se de acordo com o roteiro biológico? Não, afinal, cada ser humano que nasce, nasce incompleto. Significa dizer que refutamos a teoria inatista do conhecimento. Por sua vez, ao afirmar que o ser humano nasce incompleto, e não “vazio”, estamos implicitamente nos posicionando a favor da teoria do conhecimento interacionista.
A gestação na barriga da mãe, aquela que tão bem dá conta de produzir os outros animais, no ser humano é incompleta. Nascemos com muito mais faltas que com presenças. Boa parte do que necessitamos para viver neste mundo está inacabado. É como se, no caso do ser humano, tivéssemos que ter duas mães: a primeira, a mãe biológica, que se encarrega da primeira vida em sua barriga; a segunda, a mãe social, a sociedade toda (inclusive a mãe biológica), que constitui uma espécie de segunda barriga. A sociedade humana é uma barriga social. São Tomás de Aquino dizia que “o homem é, por natureza, político, isto é, social”. [1]
O homem é aquele que, como outros animais, um dia sai de casa, não para viver sob a orientação dos instintos, mas para viver sob a orientação das regras que tornem possível o convívio com outros homens. O homem sai de casa para viver na polis, ou seja, para exercer sua condição de animal político, de forma que em sua vida tudo será “[…]decidido mediante palavras e persuasão, e não força e violência.” P.31[2]. Ainda, segundo Hannah Arendt, “Para os gregos, forçar pessoas mediante violência, ordenar ao invés de persuadir, eram modos pré-políticos de lidar com as pessoas, típicos da vida fora da pólis, característicos do lar e da vida em família, em que o chefe da casa imperava com poderes incontestes e despóticos, ou da vida nos impérios bárbaros da Ásia, cujo despotismo era frequentemente comparado à organização doméstica.” P. 32[3].
Ainda hoje, especialmente quando se trata de crianças, as relações familiares são orientadas por imposição dos mais velhos. O modo como as relações são tratadas em família é completamente diferente do modo como são tratadas na rua. Na rua, pela primeira vez, as crianças estabelecerão relações entre pares, sem a intermediação de adultos e sem as imposições destes. Especialmente quando sua imaginação amadurece e, por volta dos seis, sete anos, com o desenvolvimento da moral (ainda heterônoma), surge o interesse pelas relações coletivas; a criança sente-se compelida a resolver os conflitos por discurso, por persuasão. A violência como instrumento de solução de conflitos perde força e as negociações e os acordos ganham terreno.
Talvez não devesse ser assim, mas também a escola, de maneira geral, é impositiva, realizando sua orientação pela força. Se nela antigamente prevaleciam os castigos, alguns corporais, a força e a imposição física dos adultos sobre as crianças, na escola atual, e não tão atual assim, predomina a violência simbólica em forma de ameaças e chantagens, de avaliações, notas, premiações, competição pautada em normas de referência social, reprovações etc. Aquele que deveria ser um espaço acolhedor, de liberdade, de criação, de amadurecimento, da constituição de vínculos e estabelecimento de diversas e distintas relações sociais, apresenta-se como um ambiente intimidador, cerceador… um espaço de privação de liberdade, no qual as crianças permanecem em “celas de aula” cumprindo “regime fechado” em uma “grade horária” sob vigilância e coação.
Portanto, resta às crianças o grupo infantil; sua pequena sociedade de pares que, embora carregando sinais da violência que cada qual traz da família e, muitas vezes, da escola, pressiona para um tipo de relações públicas e políticas, nas quais a ação e o discurso precisam caminhar em consonância, para que os conflitos sejam resolvidos. Afinal, na rua da criança, trata-se de brincar, e o jogo não pode ser interrompido por largo tempo. Que os conflitos sejam rapidamente resolvidos, as regras aceitas ou (re)elaboradas, e que o jogo siga.
[1] De acordo com Hannah Arendt, a citação é do Index Rerum da edição de Turim das obras de São Tomás de Aquino (1922). Arendt, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
[2] Arendt, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
[3] Idem