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Existe uma máxima no mundo do futebol – “treino é treino, e jogo é jogo” -, que teria sido ditada por Didi, craque brasileiro e campeão mundial de 58, também conhecido pela imprensa internacional da época como o “Mr Football”. Conta-se que Didi costumava fazer um menor investimento de esforços físicos nos treinos. Admite-se que em sua concepção o craque economizava energia física e mental nos treinos para demonstrar empenho, técnica exuberante e lucidez nos jogos.

Essa máxima, que para muitos se tornou um lema, foi assinada por diversos jogadores e jogadoras na história do futebol. Diversos destinos semelhantes já se repetiram diversas vezes nas sagas dos jogadores bons de treino ou dos jogadores que se preservam para o jogo. No entanto observa-se que em ambos os casos há uma instabilidade de desempenho.  E o que impede jogadores e jogadoras com esse perfil de instabilidade de ter um desempenho notável repetido diversas vezes? Qual é a parcela do segredo para torná-los profissionais bem sucedidos que atuam como verdadeiros campeões?

Uma das chaves para a solução deste problema pode estar na preparação para o treino, que deve ser diferente da preparação para o jogo. Didi estava com os pés nos dois lados do campo. Ao mesmo tempo em que apontou a diferença dos contextos de treino e jogo, levanta-se a possibilidade de dar um tratamento adequado às práticas de treino, sem subestimá-lo quando falamos de motivação. Desta maneira, coloquemos treino e jogo, lado a lado, para podermos diferenciar os ambientes criados a partir do onde acontece, e de quem participa de suas ações. Perceberemos que os dois lados pertencem a um campo só.

O ambiente do treino comunica mais segurança, previsibilidade, rotina e permissão de erros, já que não há naquele evento uma disputa por pontos de um campeonato ou interferência do adversário ou da torcida. No treino é possível pensar o jogo, construir estratégias que podem ser testadas e revistas constantemente. A falta do acerto é mais tolerável, o foco na construção do bom desempenho tira o lugar das cobranças imediatas pelo chute certo e vitorioso que, espera-se, deverá vir no jogo. A emoção cede o lugar à razão pautada pela ciência e passividade do tempo, que distorce timidamente as experiências vividas por quem busca sua melhoria constante.

A atmosfera do jogo tem outros componentes. O desafio começa a ser vivido na preparação, no treino, e é inevitável que a ansiedade seja uma das expressões da ameaça que o adversário representa. Temos aqui um desafio a ser vivido, pois essa é a arena da competição que se torna o palco da realização dos sonhos de quem joga. Aqui é impossível viver sem as expectativas que ora alavancam o desempenho, ora frustram pela crueldade do gol sofrido no último minuto. A alegria se veste de decepção em poucas jogadas e a bússola da emoção é muitas vezes que determina a direção e a intensidade das ações. A razão se torna tímida e submissa à raiva provocada pelas injustiças da arbitragem, pelo medo da perda do controle do jogo, dispara a euforia pelos lances e gols incríveis e decisivos, ou destrona qualquer sensação de favoritismo diante da tristeza pela derrota inesperada.

Alguns estudiosos do esporte, como Terry Orlick, mostram o equilíbrio de fatores básicos quando destacam que o desempenho é fruto da soma da expressão das capacidades físicas à capacidade técnica e tática, temperados de maneira equilibrada pela rapidez das respostas psicológicas exigidas nas ações do jogo. Essa pode ser uma chave fundamental. Através de experiências bem sucedidas nos processos de preparação esportiva conduzidos pelo conhecimento científico, hoje entende-se que o treino deve se pautar pelo que é possível ser praticado diante do que se conhece do jogo, seja essa compreensão geral ou específica, orientada para enfrentar determinado adversário com suas características predominantes. Ou seja, a preparação de uma equipe de futebol deve se pautar e ter como referência o que essa equipe quer expressar no campo de jogo. A aproximação do treino em direção ao jogo, ou seja, o jogo a ser jogado moldará a estrutura e faces do treino, em uma convergência inevitável de seus contextos inicialmente distantes em características táticas e de emoção. Da suposta previsibilidade do treino à imprevisibilidade do jogo.

Em síntese, para que tenha sentido e eficácia, o treino deve representar e ter características determinantes do que é o jogo. E para que isso aconteça, é necessário que os treinadores criem estratégias eficazes de preparação, focando no que chamamos de estado interno do atleta. A dispersão e baixa motivação de jogadores para tarefas elaboradas pelos técnicos devido à falta de significativa importância que aqueles dão ao treinamento ou mesmo a estruturação inadequada destas práticas pelos treinadores, pode vir a diminuir o aproveitamento do potencial que atletas têm para o desenvolvimento de seu potencial. Os exercícios elaborados e dinâmicas ministradas pelos treinadores, bem como sua regência, tem influência direta na forma como os atletas se engajam no treino.

E como nós podemos perceber isso na prática?

Alguns jogadores se preparavam para elevar seu desempenho no treinamento e em jogos. Pelé era conhecido pela sua dedicação aos treinos específicos após o encerramento de uma sessão de treinamento. Costumava repetir diversas vezes algumas ações que gostaria de executar em campo, pois acreditava que seria mais fácil agir com base no que já conhecia. E assim podia criar. Em seu livro “Rendimiento Máximo” Charles Garfield relata que Pelé, antes de entrar para o campo e jogar, costumava deitar e colocar uma toalha cobrindo o rosto, em um exercício que o levava a lembrar-se dos tempos de infância em que jogava e se divertia. E depois, segundo o autor, Pelé vivenciava um estado interno que o permitia ‘fluir’ pelo jogo, como se ainda vivesse na liberdade de simplesmente jogar como o fazia na infância.

Cristiano Ronaldo é outro atleta que se destaca pela visão diferenciada de preparação para jogar. Focado em seus objetivos e orientado para o que deseja, ele se tornou uma referência do atleta de futebol que se empenha na aplicação aos treinos ministrados nos clubes onde joga, e desta maneira soma à sua preparação atividades extras que atendem necessidades que o treino, em sua avaliação, não dá conta. Através dos resultados que vem obtendo em sua brilhante carreira, Cristiano Ronaldo se mostra focado em metas, expressa energia e envolvimento durante os jogos, consegue se manter em alto nível de desempenho, mesmo diante de intensa exigência em treinos e jogos, e mostra lucidez ao criar oportunidades para enfrentar novos desafios com mudança de clube e aprender coisas novas, ainda que já tenha o reconhecimento do mundo sobre sua relevância para o futebol.

Tanto Pelé quanto Cristiano Ronaldo mostram claramente a importância de trabalhar com metas e aproveitar o máximo das experiências de preparação para o jogo. Kevin Keegan, ídolo inglês dos anos 70 e 80, disse certa vez: “Eu sempre tenho um alvo; entrar no time, jogar cada jogo, melhorar minha forma física e meus níveis de atuação”.

Para esses jogadores, a preparação é a chave do desempenho bem sucedido.

*Texto produzido a partir das discussões e contribuições dos integrantes do grupo de estudo Neurociência e Desempenho, da Universidade do Futebol

Referências da literatura.

GARFIELD, C.A.; BENNETT, H.Z. Rendimiento máximo. Barcelona: Martinez Roca, 1989.

ORLICK, T. Em busca da excelência. Porto Alegre: Artmed, 2009.

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