Certo dia, ainda sob os cuidados de um desses grandes professores que temos por aqui, alguém me fez pensar que cultura é uma forma de cultivo. ‘Do alemão kultur!’, ele dizia. Cultivo de qualquer coisa – inclusive no futebol. Ainda que não seja, nem de longe, a única forma de pensar a cultura, isso não saiu da minha cabeça desde então.
Na última segunda-feira, no programa Bem Amigos!, do Sportv, Fernando Diniz deu mais uma excelente entrevista, na qual, basicamente, falou muitas das coisas que fala há bastante tempo, sobre a cultura do futebol brasileiro – mas que são mais ouvidas em certas ocasiões do que em outras. Embora tenha comentado sobre assuntos diversos, o que viralizou um pouco mais foram as falas sobre o que ele chamou de resultadismo – e o quanto isso pode ser problemático dentro de uma cultura de futebol. É claro que isso causou um certo ruído, pois há quem diga que não há outra forma de avaliar o trabalho de um treinador que não pelos resultados esportivos. Bom, não deixa de ser um argumento razoável. Mas acho que não é exatamente disso que se trata.
Quando falamos de treinadores esportivos, no Brasil ou em qualquer outro lugar, é importante termos claro que as mensuráveis de sucesso variam de acordo com o contexto. Por exemplo, para um treinador ou treinadora que trabalha na iniciação esportiva, o simples fato de ter a criança de volta no outro dia é um indicador de sucesso – afinal, mantê-la diariamente na prática é um desafio. Por outro lado, para quem trabalha na fase de especialização esportiva, o refinamento humano do atleta (em todas as dimensões, além do jogo jogado), é uma mensurável de sucesso – o treinador que não acumula títulos, mas que é capaz de formar pessoas melhores, capazes de tornarem-se quem são, seguramente atinge um lugar de muito respeito.
No caso do rendimento, a conversa é um pouco diferente: fazer com que os atletas se sintam bem e fazê-los mais refinados do ponto de vista humano – inclusive pensando em performance – são sim mensuráveis de sucesso (que muita gente diz que adora, muita gente fala com entusiasmo, mas não é tanta gente assim que valoriza, de fato). Mas no rendimento, a mensurável-mor é o que se entende por ~resultado~. E quando enfatizo o ~resultado~, faço isso porque me fica muito claro o seguinte: para quem está dentro do processo de treino, a interpretação de um resultado é muito diferente de quem está fora do processo. E isso, veja bem, não é uma forma de contar vantagem, mas uma forma de entender algumas das camadas que estão bem abaixo do resultado.
Por exemplo, algo que não me parece muito claro no debate está na relação entre o treino e o jogo. Embora não seja algo precisamente admitido, há quem acredite que a relação entre uma coisa e outra é uma relação de causa e consequência: ou seja, se uma equipe não joga bem – ou joga bem uma vez ou outra, ou então não joga bem como o analista gostaria que jogasse, é porque o treinador ou a comissão não trabalham bem, ponto final. Em outras situações, de menor imprevisibilidade, talvez nós até pudéssemos falar em algo do tipo, mas no futebol pode ser exatamente o contrário. Porque o futebol é tudo menos linear, e as ondas do jogo ficam ainda mais pronunciadas quando simplesmente pensamos que o futebol é um jogo coletivo de invasão: existem onze do lado de cá, mas também existem onze do lado de lá, vinte e dois jogadores em relação constante, todos eles buscando chegar ao alvo adversário ao mesmo tempo em que impedem que o adversário chegue ao próprio alvo – podendo fazer tudo isso não apenas no próprio campo, mas também no campo adversário. Tudo isso – que é diferente do vôlei, do basquete, do handebol, do tênis e etc – faz do futebol um jogo cuja complexidade é elevada à enésima potência. Isso quer dizer que o futebol é tudo menos linear, e que portanto existem milhões de outros fatores que afetam o rendimento de uma equipe do que apenas o trabalho ou as ~ideias~ de um treinador ou da comissão. É perfeitamente possível que um trabalho de mediano para bom consiga resultados expressivos, ao mesmo tempo em que é perfeitamente possível que um trabalho de ótimo nível, com excelentes profissionais, com as práticas mais ~modernas~ que se possa imaginar, num ambiente de grandes relações humanas… não apresente resultado algum.
Ao mesmo tempo, é preciso nos perguntarmos sobre o que falamos quando falamos de resultados. Porque, ao contrário de uma empresa – para usar um exemplo muito caro ao futebol de hoje em dia, onde os resultados são medidos dentro de intervalos razoáveis, no futebol os intervalos não existem, a meia-vida no futebol é mais meia do que vida, e tudo o que resta é sobreviver: quem não ganha não serve. E não interessa se jogou bem, não interessa a qualidade dos treinamentos – quando se consegue treinar, não interessa quais são as teorias e as metodologias que sustentam um certo trabalho, não interessa o nível de formação de vários dos nossos profissionais do futebol, se os profissionais do clube estão com algum tipo de problema particular, não interessa se os salários estão atrasados, não interessa se vivemos num país de dimensões continentais, com biomas absolutamente distintos, o que, de cara, já inviabilizaria qualquer comparação com qualquer uma das grandes ligas europeias, não interessa que o nosso pé-de-obra seja vendido, muitas vezes a preço de banana, o que faz com que de fato vários dos nossos melhores jogadores sequer conheçam os campeonatos locais, não interessa que os árbitros não sejam profissionalizados, ainda que sejam bizarramente cobrados por um rendimento profissional – não interessa nada disso. Ainda persiste a ideia que humanizar o futebol é perfumaria. O que interessa é o seguinte: quanto foi o jogo?
Aqui está o calcanhar de aquiles do resultadismo. Não é bem o fato de se basear no resultado para dar uma certa opinião, mas o fato de ignorar, consistentemente, toda e qualquer outra variável que não o resultado para dar uma certa opinião. Das encruzilhadas do nosso futebol, essa é uma das mais graves, porque tudo o que o analista vê é o resultado, ou o que ele entende como resultado, especialmente quando se pensa no que significa ‘jogar bem’ e etc, enquanto o profissional do futebol vê tudo o que está antes e além do resultado – e obviamente não há como não haver ruídos. Assim como há todo um universo sob a consciência humana – não é preciso ter lido o Freud para sabermos disso – há mundos e mais mundos antes e além do resultado esportivo, e quanto menos soubermos deles, ou menos nos interessarmos por eles, piores serão as nossas interpretações, mais frágeis serão os nossos diálogos – e o nosso debate sobre futebol, ainda que se venda profundo, vai afogar na superfície.
Cultura, como alguém me ensinou certa vez, é cultivo – e fico pensando sobre o que cultivamos hoje em dia mas, especialmente, sobre tudo aquilo que ainda podemos cultivar.