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Não faz muito tempo, pouco antes do jogo entre Red Bull Leipzig x Atletico de Madrid, pelas quartas-de-final da UEFA Champions League, em que Julian Nagelsmann deu mais uma ótima entrevista, dessas que viralizam facilmente, na qual falou um bocado sobre o jeito de jogar da sua equipe e algumas ideias particulares sobre liderança. Me chamou a atenção um trecho, em particular, que transcrevo livremente abaixo:

Você não pode ir para o campo e ganhar o jogo sozinho. Precisa dos seus jogadores e de ter os soft skills, os social skills, que são os mais importantes quando você é o treinador e tem 26 ou 27 jogadores. Acho que uma mistura entre habilidades táticas e sociais fazem de você um dos melhores treinadores na Europa, ou do mundo. Se for um cérebro tático, mas as suas capacidades sociais forem baixas e não muito bem desenvolvidas, não terá sucesso. Se você não conseguir reconhecer detalhes táticos, então é importante que crie um bom staff técnico, que te ajude e complemente, mas, se as tuas aptidões sociais forem muito elevadas, pode ter muito sucesso. Mas, se só tiver a tática, é muito complicado.

Bom, há pelo menos duas questões importantes aqui. A primeira tem a ver com o início da resposta, quando Nagelsmann se refere ao que ele chama de soft skills. Não é a primeira vez que o vejo falando disso – eu mesmo já escrevi um outro texto comentando uma entrevista de teor semelhante. Basicamente, quando ele fala dessas soft skills, fala de algo como habilidades sociais que, segundo ele próprio, são 70% do sucesso de um treinador.

O número em si não me interessa tanto, mas a primazia das relações, sim. Sendo um jogo praticado por humanos, é claro que o futebol será tanto mais fértil quanto mais estiver atravessado por essa grande dimensão de humanidade, pela capacidade cada vez mais rara de tratar gente como gente, nas coerências e nas contradições do outro – e não apenas gente como coisa. Ao mesmo tempo, ainda mora na fala do próprio Nagelsmann uma referência ao que ele entende por habilidades que, a meu ver, merece alguma atenção.

Nessa vertigem pela aquisição de habilidades, percebo que alguns colegas fazem apostas realmente altas nisso que podemos chamar de conhecimentos, via tentativas mais ou menos sistematizadas de consumo de informações não apenas futebol, como sobre a vida. Afinal, não faltam páginas nas redes sociais, assim como não faltam textos e livros e cursos de gente supostamente ensinando conhecimentos e habilidades para liderança, habilidades para empatia, habilidades para respeito (geralmente mais para ser respeitado pelos outros do que para respeitar), ou mesmo habilidades de comunicação – talvez as mais famosas na ordem do dia. Existe uma ansiedade bastante razoável pela ideia de consumir e adquirir ‘conhecimentos’ – ainda que isso nos leve a consumir mais do que somos capazes de processar – e neste momento histórico, esse tipo de busca está bastante atrelada à chancela de supostos experts, que vendem técnicas e mais técnicas que supostamente formariam outros experts. E uma das consequências práticas disso é as habilidades sociais, que num passado não muito recente nos eram ensinadas pela vida que se vivia, estão se tornando de fato cada vez mais técnicas, são reflexo de esforços técnicos, de modo que o respeito, a empatia, a comunicação e a própria liderança viram apenas a reprodução pasteurizada de uma ou várias técnicas – e não qualidades humanas propriamente ditas.

Não por acaso, não surpreende a quantidade realmente impressionante de líderes cada vez mais técnicos, retratos de técnicas e mais técnicas que, em cada gesto que fazem e em cada passo que dão, estão cada vez mais nos dizendo que são produto de um conjunto de técnicas, máquinas de si mesmos, que às vezes formam uma mistura tão mirabolante, que o resultado acaba sendo um certo tipo de teatro, sujeitos tão dominados pelas técnicas que eles próprios julgavam dominar, que agora tornam-se apenas atores ou atrizes de si mesmos, donos de papeis cuja aparência nem sempre condiz com a realidade. E todos vocês, que conhecem bem um vestiário, sabem que no vestiário as máscaras caem muito rápido. A mentira de fato tem pernas curtas.

Daqui vem outra coisa que me chama a atenção no discurso do Nagelsmann, essa mais sutil: o fato de defender as habilidades sociais e o fato de haver tanta gente querendo adquirir habilidades sociais da mesma forma como se adquire um produto qualquer no supermercado não significa que ele próprio tenha se formado assim. Quando olho para um sujeito como ele, que parece fluente na habilidade de lidar com pessoas, penso que parte muito significativa dessa personalidade não vem de processos formais de aprendizagem, mas sim de uma articulação das próprias experiências de vida – e da intuição. Quando tecnificamos excessivamente os processos de aprendizagem, geralmente deixamos em segundo plano as nossas próprias experiências, os acontecimentos que preenchem a nossa vida, e ignorando as experiências, também ignoramos a capacidade de dar sentido às coisas que nos acontecem. Existem outras formas de aprender, outras formas de posicionar-se no mundo, que estão para além das formalidades ou dos conhecimentos dos experts, que por vezes residem na capacidade de experienciar e/ou de intuir. Embora as técnicas sejam um apoio importante, relacionar-se com os outros não é algo que se aprende pelos livros, mas depende de um outro tipo de saber, depende de um saber da vida, depende de olhar para dentro, depende de uma forma muito particular de estar no mundo – e, portanto, depende da tentativa incansável de tornar-se quem se é.

E aqui chegamos numa característica final, que gostaria de comentar com vocês, que está justamente na capacidade cada vez mais rara de ser quem se é. O sujeito recheado de técnicas pode sentir-se preenchido, mas também pode ficar tão entupido, tão constipado, de um modo que não sabe mais esvaziar-se e relaxar para ser apenas quem é, sem muitas performances, sem as maquiagens da vida social. Por outro lado, o sujeito que se sente bem sendo quem é, com o que há de bom e de ruim nisso, provavelmente terá ainda mais recursos para mediar as relações humanas de que falamos aqui. E portanto, talvez as habilidades sociais não sejam exatamente um conjunto de técnicas ou procedimentos que nós usamos para estar no mundo, mas muito mais um conforto, um aceite, e em grande medida uma busca de nós mesmos, das experiências e mesmo das contradições que nos fazem humanos.

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