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Crédito imagem – Redes sociais Corinthians Feminino/Divulgação

Vocês sabem que um dos temas mais particularmente interessantes do debate, quando pensamos na formação de treinadores e profissionais do futebol em geral, é precisamente o tema da superação do pensamento disciplinar – seja por isso que chamamos de multidisciplinaridade, de interdisciplinaridade, ou mesmo de transdisciplinaridade. Aliás, a Universidade do Futebol, especialmente a partir dos professores João Paulo Medina e Manuel Sergio, trouxe contribuições inestimáveis nesse sentido, numa época em que o simples fato de sugerir um assunto desses estava mais próximo da loucura do que da subversão.

De alguma forma, tratar da superação das disciplinas significa tratar disso que sujeitos como o Edgar Morin chamam de religação dos saberes. Fala-se muito do profissional do futuro, no futebol e fora dele, e vou me convencendo cada vez mais de que o profissional do futuro é meio como aqueles sujeitos do Renascentismo, curiosos e muito inquietos não apenas em um determinado assunto, não apenas numa parte, isolada do todo, mas interessados no todo, buscando ativamente articular as relações entre assuntos supostamente diferentes. Vamos conversar um pouco sobre isso.

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Rápida lembrança histórica: no século XVII, com a publicação da obra de Rene Descartes, particularmente de um livro chamado Discurso Sobre o Método, são fincadas as bases de boa parte do que entendemos hoje por ciência, ao mesmo em que são fincadas as bases de uma forma muito particular de pensamento: no segundo principio de Descartes, é preciso “(…) divisar cada uma das dificuldades, que examinarei em tantas parcelas quanto seja possível e requerido para melhor resolvê-las…”.* Ou seja, se quisermos saber de futebol, por exemplo, precisaríamos reduzir o futebol até à menor parte possível, para então, depois de entender a parte, buscar o entendimento do todo, ainda de uma forma gradativa, pois como segue o próprio Descartes, seria preciso “(…) conduzir meus pensamentos por ordem, começando pelos assuntos mais simples e mais fáceis de conhecer, para atingir, pouco a pouco, como que degrau por degrau, o conhecimento dos assuntos mais complexos…”.*

Para não nos arrastarmos muito, vocês sabem que uma das armadilhas desse tipo de pensamento (ainda que Descartes tenha sido um sujeito absolutamente transgressor para a sua época) é que ele, aos nos fazer transformar o todo em pequenas partes, faz não apenas com que as partes sejam diferentes do que eram antes (porque a perda das relações entre as partes faz com que elas, deixam de ser quem são), assim como o todo, quando religado, torne-se outra coisa, pois o todo não se faz pela simples soma das partes, mas se faz, precisamente, pelas profundas relações existentes entre elas. No todo estão as partes onde está o todo. Querem um exemplo nítido? Via de regra, qualquer substituição no jogo de futebol é tratada como uma mera troca de peças (atenção à palavra que coisifica o jogador, ao invés de humanizar): o problema é que uma substituição não é apenas uma troca de um jogador por outro, é uma mudança brusca em todo o sistema jogo, porque a qualidade das relações que o jogador substituído mantinha é completamente diferente da qualidade das relações do novo jogador, relações com companheiros, adversários e arbitragem, de uma forma que quando se substitui um jogador por outro, não se mexe apenas na parte, se mexe no todo (repare, por exemplo, no impacto violento da ausência de Luciano no atual rendimento do São Paulo).

Quatro séculos depois, à luz do caráter cíclico (e não linear) da história, nos vemos mais uma vez às voltas com o que o próprio Edgar Morin chama de caráter hologramático (em que a parte contém o todo) e complexo (qualidade daquilo que é tecido junto) do saber. Para religarmos os saberes no futebol, ao invés de olharmos apenas de um ponto de vista técnico, físico, tático, mental, objetivo, mensurável, antropocêntrico, ao invés de olharmos para o futebol por apenas uma lente, por uma lente dominante, talvez seja preciso olharmos à luz de uma prática complexa, sistêmica, na qual todos aqueles saberes não estejam des-ligados, separados entre si, mas estejam profundamente ligados, de um modo que não percam as qualidades que os constituem quando estão em relação. Mas como podemos fazer isso de um ponto de vista individual? Bom, talvez seja preciso adotarmos algumas posturas, que podem perfeitamente ter como ponto de partida aquela premissa do filósofo francês Blaise Pascal, que escreveu literalmente o seguinte: “Como todas as coisas são causadas e causadoras, ajudadas e ajudantes, mediatas e imediatas, e todas são sustentadas por um elo natural e imperceptível, que liga as mais distantes e as mais diferentes, considero impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, tanto quanto conhecer o todo sem conhecer, particularmente, as partes.”. Muito bem, vamos citar pelo menos três posturas que nos ajudem a religar os saberes.

Uma postura certamente necessária é uma postura de abertura. O filósofo Gerd Bornheim, num belíssimo livro chamado Introdução ao Filosofar, trata logo de cara do lugar e da importância da abertura – que só pode ser possível a partir do que se chama de admiração, não num sentido abstrato da coisa, mas sim como uma postura prática de reconhecimento da própria ignorância: “No comportamento admirativo o homem toma consciência de sua própria ignorância; tal consciência leva-o a interrogar o que ignora, até atingir a supressão da ignorância, isto é, o conhecimento.” (p.24) Se quisermos de fato religar os saberes no futebol (o que significa religar nossos próprios saberes), se quisermos compreender mais do que meramente julgar, seja quando falarmos do controle da profundidade no momento defensivo ou da grandeza do ângulo Q no membro inferior direito de um determinado atleta, talvez seja importante adotarmos uma postura de admiração, de reconhecimento dos nossos próprios limites, de uma forma que, reconhecendo que nossas ações, por mais embasadas e metódicas que sejam, não deixam de estar no campo da aposta, podemos superarmos a nos mesmos ao longo do tempo.

Em segundo lugar, acho válido pensarmos naquela metáfora do Michel de Montaigne, que mais tarde viraria um título de livro do Edgar Morin: da cabeça bem-feita. Não vamos religar os saberes no futebol se apenas e tão somente nos empanturrarmos com todas as teorias possíveis, se formos leitores do tipo traças (como diz brlhantemente o Alberto Manguel, naquele livro ‘O Leitor como Metáfora’), se fizermos de nós mesmos almoxarifados de todas as informações do mundo – o que não deixa de ser uma armadilha em tempos de internet. A cabeça bem-feita não trabalha em quantidade, trabalha em articulação: ao invés de saber mais, a ponto de saturarmos e até explodirmos, vale mais articular os diferentes saberes a partir daquela abertura de que falamos acima, uma abertura para nós mesmos e para o mundo. Além disso, uma cabeça bem-feita trabalha de um ponto de vista complexo, que considera que tudo mantém algum grau de relação com tudo, de uma forma que ao invés de separar, a nossa postura seja a da união. A religação dos saberes não deixa de ser uma postura ativa de procura entre relações que parecem invisíveis.

Da mesma forma, não podemos deixar de falar da importância da incerteza. Religar os saberes, de alguma forma, é uma estratégia sofisticada de lida com a incerteza do mundo. Especialmente hoje em dia, em que alguns dos delírios da tecnologia estão nos fazendo acreditar, cada vez mais, que é possível manter níveis elevados de controle sobre as nossas próprias vidas e sobre o mundo que nos cerca, como se cada um de nós fosse, de alguma forma, o centro do mundo (o que não se sustenta por um só instante, porque se todos estivermos no centro do mundo, como vez por outra pensamos, ninguém o está, de fato), é muito comum perdermos de vista o lugar da imprevisibilidade, da incerteza, da poesia de versos incertos, de que eu mesmo escrevi por aqui certa vez, que fazem o jogo de futebol e a vida que se vive precisem ser vistos não apenas pelo que são (ou parecem ser), mas pela sua potência, pelo vir a ser, sendo que o vir a ser de uma jogada ensaiada, ou de uma sessão de treino, ou de um jogo decisivo, ainda que depois da mais meticulosa preparação, é uma decisão do próprio jogo – não é nossa. O jogo é mais autotélico do que antropocêntrico: em outras palavras, as vontades do jogo são maiores do que as nossas próprias vontades (os colegas treinadores sabem bem do que estou falando). Os mais bem pensados delírios de controle se derretem quando submetidos à força do jogo.

É claro que não esgotamos o tema por aqui, mas acho que temos um bom caminho para pensarmos a religação dos saberes no futebol se o fizermos a partir da abertura, da articulação de uma cabeça bem-feita e da admissão da incerteza. Com isso, vamos aos poucos nos encontrando com uma outra forma de pensar – e uma reforma do pensamento é certamente um elemento fundamental na religação dos saberes do futebol e no entendimento da vida que vivemos todos os dias.

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