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Ainda durante o jogo entre Palmeiras x Tigres, pela semi-final do Mundial de Clubes da FIFA, por mais de uma vez ouvi uma afirmação que me parece bastante perigosa e que, de alguma forma, pode ser discutida: algo próximo de que o Palmeiras não jogaria bem por uma suposta falta de coragem, que a falta de coragem teria contribuído para uma suposta falta de ‘ideias’ e que a falta de coragem seria uma das características presentes em diversas equipes, especialmente as brasileiras, quando em jogos decisivos. Bom, vamos conversar um pouco sobre isso.

Em primeiro lugar, não custa nada pensarmos sobre o que falamos quando falamos de coragem. Vocês sabem que coragem é uma palavra que vem do francês courage, que por sua vez tem origem no latim cor – faz referência ao coração. Assim, podemos pensar no sujeito corajoso como aquele que atende espirituosamente aos próprios sentimentos (o que, no futebol, não deixa de ser algo extremamente interessante, uma vez que está cada vez mais capilarizada a ideia da razão, a partir, por exemplo, de uma ocupação racional dos espaços, noção que trabalhei neste texto). Muito embora, no nosso imaginário, o sujeito corajoso seja aquele que enfrenta todos os desafios, sem qualquer traço de temor, há outras variáveis a se considerar: o próprio Aristóteles, cuja ética se apoiava na justa medida, entendia que a coragem, ao contrário do que se pensa, não é o extremo oposto da covardia – a coragem seria o meio-termo entre a covardia e a temeridade. Embora não seja covarde, o sujeito corajoso também não é imbecil, sabe das forças que têm, mas também sabe muito bem das forças que lhe escapam.

Se a coragem não é tão simples quanto parece para um sujeito apenas, o que dizer de uma equipe de futebol? Já não é mais propriedade privada a noção de que as relações de uma equipe de futebol estão muito próximas das de um sistema aberto, cuja comunicação não acontece exatamente por princípios de causalidade (relações de causa/efeito), mas talvez por princípios de complexidade – da qualidade daquilo que é tecido junto. Para que uma equipe não fosse corajosa, pelo menos num sentido mais pragmático do termo, seria preciso uma enorme dose de reducionismo (como se os jogadores todos tivessem uma mesmíssima capacidade de interpretação de uma determinada instrução), mas também e especialmente uma enorme capacidade de persuasão do treinador, como se treinadores fossem sofistas, cuja oratória é tão violentamente magnética que praticamente hipnotiza o vestiário inteiro – elevando à enésima potência aquelas habilidades sociais da qual o Julian Nagelsmann tanto fala.

Além disso, não deixa de ser um erro importante achar que a coragem (ou a falta dela) tem relação direta com determinadas estratégias ou mesmo com determinados modelos de jogo. Por exemplo, existe uma noção de que equipes que tendem à defesa são quase que automaticamente covardes. Só que de um ponto de vista prático isso não se sustenta. Vamos pensar, por exemplo, no Atlético de Madrid, comandado nos últimos dez anos pelo Diego Simeone: todos sabemos que o modelo de jogo do Atletico passa por um sistema defensivo muito forte, por muitas vezes baseado em bloco médio/baixo, oscilando entre oito, nove ou até mesmo dez jogadores atrás da linha da bola – mas mesmo assim uma equipe muito agressiva, muito ativa de um ponto de vista defensivo (inclusive elevando as qualidades defensivas de vários jogadores que nasceram mais vocacionados para o ataque, como Saúl Ñiguez e Koke), que certamente jamais, em nenhuma hipótese, poderia seria chamada de covarde mesmo pelo mais relapso espectador de futebol. Pelo contrário, eu até diria que equipes mais especulativas, que nitidamente se defendem a partir da posse da bola (e não abrindo mão dela), possam ser tidas como covardes pelo simples fato de não cederem instantaneamente aos impulsos de ataque.

O problema é que esse tipo de relação direta entre o rendimento pontual em um determinado jogo e uma determinada postura ética (de coragem, covardia ou qualquer outra coisa) não dá conta da complexidade do jogo de futebol, de que falávamos acima. Conversamos sobre isso diversas vezes, mas nunca é pouco lembrar que o jogo de futebol é, antes de tudo, um jogo, é um espaço de incerteza e de imprevisibilidade, norteado por regras muito bem definidas, por um espaço próprio e por um tempo próprio – que é diferente do tempo cronológico. Sendo o jogo de futebol um jogo coletivo e um jogo coletivo de invasão, o nível de complexidade aumenta violentamente – inclusive de um modo em que talvez a nossa capacidade de compreender o jogo na sua plenitude seja muito menor do que imaginamos, porque o que se consegue ver no jogo de futebol é apenas um fragmento de tantas outras forças sutis e implícitas que vão se relacionando no campo de jogo. Há um campo de forças do jogo de futebol que é visível, que pode ser capturado pelos olhos, mas há um outro campo de forças, um campo de relações entre companheiros, entre companheiros e adversários, entre companheiros, adversários e a bola, enfim… há um campo de forças que escapa completamente das nossas percepções, e que muitas vezes, curiosamente, só pode ser captado pelo coração, só pode ser sentido (por isso, defendo que a nossa formação como profissionais do futebol não seja única e exclusivamente racional, muito pelo contrário, seja também uma educação dos afetos, uma educação de corpo inteiro, como tanto diz o Professor João Batista Freire) e estando na morada dos sentimentos, que é o coração, só pode ser sinônimo de coragem, ao invés do seu contrário.

Embora tenhamos a necessidade e mesmo a tentação de encontrar justificativas que nos permitam dar sentido ao jogo de futebol (e à vida que se vive), é muito importante evitarmos ao máximo os reducionismos de qualquer natureza. Embora seja um elemento muito importante, inclusive enquanto conteúdo de processos de treino, me parece que o que se entende por coragem ainda esteja muito distante de dar conta do resultado pontual de um jogo de futebol.

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