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Crédito imagens: Redes Sociais Fiorentina

Na última semana, vocês vão se lembrar, falávamos aqui sobre uma certa transição no nosso pensamento sobre futebol: se houve um tempo em que o jogo era bem mais pertencente aos jogadores, por uma série de razões, hoje parece claro que o jogo pertence, na sua maioria, aos treinadores. Não por acaso, tomou-se como imperativo que o rendimento de uma equipe num campo de futebol é especialmente reflexo da qualidade de um certo sistema de ideias. Sobre isso, meus argumentos são dois: I) embora as ideias sejam importantes, elas ainda são secundárias dentro da cadeia de forças do jogo e II) a crença inquestionável nas ideias, ainda que sem querer, patrocina o sistema doentio de demissão de treinadores no futebol profissional – afinal, numa análise simplista, se uma equipe não tem performance, deve ser pela falta de ideias do treinador. Bom, vamos falar um pouquinho mais disso.

***

Numa entrevista dada à Folha de São Paulo, em 1994, o Edgar Morin – muito citado, nem sempre lido – foi perguntado sobre um conceito importante da sua obra, chamado ecologia da ação. Ele respondeu o seguinte:

“Desde que você começa uma ação, política por exemplo, ela vai escapar progressivamente ao seu controle para entrar num jogo de interação e retroação no meio em que ela se produz. (…) Ninguém pode determinar as consequências futuras da ação. Há um princípio de incerteza fundamental.“ 

Não há uma linha sequer da resposta que fale diretamente sobre futebol – mas para o bom entendedor, um pingo é letra. O escape progressivo ao nosso controle e a consequente entrada num jogo de interações e retroações é precisamente o que se passa no jogo de futebol, e podemos sentir isso num único exercício de uma única sessão de treino. De um ponto de vista do jogo – não apenas do jogo de futebol, mas do jogo (sobre o qual o professor Alcides Scaglia escreve tão bem), que antecede ao jogo de futebol – é imperativo considerarmos que um determinado sistema de ideias, que baseia uma série de comportamentos individuais e coletivos, é uma variável significativa, mas num sistema de inúmeras outras variáveis. Se de fato quisermos lançar mão de um pensamento complexo, em que tudo está tecido junto, num sistema de profundas interações e retroações, entre onze companheiros e onze adversários, sendo cada um dos vinte e dois sujeitos absolutamentes diferentes, então é preciso localizarmos bem as ideias – não porque não sejam importantes, é óbvio que são, pois porque há outras forças, para além das ideias, se afirmando e se negando continuamente no campo de jogo. Embora todos nós, como sujeitos humanos, tenhamos nossas ideias (por isso, aliás, não há quem seja ‘deserto de ideias’) é preciso considerarmos que o jogo, inclusive enquanto antecessor da cultura (Huizinga) também tem um sistema de ideias próprio, absolutamente alheio à razão humana. É bem verdade que sim, o jogo pode ser sensível às nossas respostas, mas isso não significa que a narrativa do jogo está exclusivamente sob nosso controle.     

Como a boa ciência e a boa filosofia dos séculos XIX e XX nos mostraram (Bachelard, Popper, Nietzsche…), o funcionamento das coisas pode não ser exatamente fruto de causalidades – como disse o Morin ali em cima, há um princípio de incerteza fundamental. Não é por acaso que tenta-se impor uma certa ordem humana à profunda incerteza do mundo – inclusive como reconhecimento sutil da nossa mais profunda fragilidade. E para saber disso, vejam bem, não é preciso termos lido ninguém: por que raios quando éramos crianças e jogávamos bola na rua, criávamos tantas jogadas ensaiadas, de tudo quanto é jeito, e nenhuma delas dava certo? Por que, quando mudávamos de casa ou de escola, e jogávamos pela primeira vez com um grupo novo, éramos capazes de jogar tão, mas tão bem futebol, como se conhecêssemos aquelas pessoas de vidas passadas? E por que depois, quando já conhecíamos de fato, quando estamos cheios de conhecimentos, em um time cheio de ideias, que atrai-fixa-liberta, que ocupa espaços entrelinhas ao mesmo tempo em que oferece amplitude máxima com os extremos no segundo terço do campo, que treina as mais impressionantes sequências ofensivas, com tudo quanto é tipo de apoio, mobilidade, ultrapassagem, segundo homem, terceiro homem, quarto homem, superioridades numéricas, posicionais, qualitativas etc etc – porque mesmo assim somos perfeitamente capazes de entrar em campo e não jogar absolutamente nada?  Porque o controle do jogo jogado não é apenas nosso – é do jogo. Quando defendo, como vários outros colegas, que o jogo seja visto como um microcosmo da vida que se vive, quero dizer exatamente isso: da mesma forma como a vida vivida não depende apenas da qualidade das nossas ideias – muito pelo contrário, há um mundo de forças agindo e retroagindo sobre nós, basta olharmos o nosso tamaninho sanitário -, o jogo jogado também não é reflexo exclusivo das ideias. Não por acaso, aliás, considere-se que a qualidade do jogo que se joga, individual e coletivamente, possa sim ter relação muito importante com o sentido que se dá à vida que se vive.

Mas não nos esqueçamos que mesmo o sistema de ideias é dependente de uma certa harmonia do sujeito. Sabendo disso, não me surpreende nem um pouco, embora me sensibilize bastante, a carta do Cesare Prandelli, que se demitiu da Fiorentina na última terça-feira. Embora ele não seja suficientemente claro sobre os problemas que enfrenta, deixa nas entrelinhas se tratar de algo emocional, razoavelmente profundo e eventualmente grave. Enquanto isso, a Fiorentina amargava apenas o décimo quarto lugar na Serie A italiana. De um ponto de vista simplista, não seria difícil atribuir uma suposta falta de ideias ao Prandelli – mas considerando o todo, será mesmo que uma análise dos comportamentos tático-técnicos da equipe, por mais minuciosa que fosse, daria conta da complexidade do problema? Não me parece.

Este é um terreno importante, que tangenciei na semana passada, que é o terreno da humanização do treino e do jogo de futebol. Vejam bem, o futebol não é um mundo à parte do mundo da vida, é parte inseparável da vida que se vive. E especialmente a partir do final do último século, foi se criando com ainda mais força essa noção de que nós, pessoas humanas em movimento, devemos ser sujeitos de performance: vejam, por exemplo, a facilidade com que se reproduz esse discurso da produtividade doentia – com seus rituais mirabolantes – assim como a facilidade com que naturalizamos, de alguma forma, a noção de que somos empresas de nós mesmos, cuja finalidade última é nos garimparmos cada vez mais.

Numa sociedade de performance, tudo aquilo que não é performático não será apenas questionado, mas será excluído – ou, numa linguagem moderna, convidado a se reciclar, como se recicla um resíduo qualquer. É precisamente aqui que se encontra a importância da humanização, não apenas porque as circunstâncias do mundo estão nos fazendo esquecer de como se trata gente como gente (e vocês sabem muito bem as coisas que se passam no futebol) mas também porque grande parte do jogo que joga e da vida que vive, como estávamos dizendo, estão para além do controle humano. Tendo em conta que um dos braços desse sistema é o individualismo, a partir de uma profunda convicção de que as vontades individuais são capazes de controlar as vontades do mundo, não surpreende que, diretamente ou não, façamos leituras tão individuais no futebol: se um dado jogador não rende, talvez seja porque não quer. Se uma dada equipe não rende, num futebol tão demasiadamente marcado pelas ideias (como faziam os cartesianos, diga-se), é porque elas eventualmente estão em falta.

Mas, lembrem-se, talvez não seja exatamente isso.

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