Crédito imagem – Lucas Figueiredo/CBF
Nas últimas semanas, venho escrevendo sobre o que pode ser considerado o grande diferencial do futebol brasileiro, talvez o maior dentre os positivos, comparativamente aos demais países. Esse diferencial refere-se ao período de iniciação esportiva, quando a cultura brasileira favorece a aprendizagem do futebol de uma maneira bastante especial, pelo menos no passado e, ainda em alguns lugares, no presente.
A população infanto-juvenil brasileira, sobretudo os meninos, mas não só, historicamente utilizava grande parte do seu tempo livre para jogar bola. Das mais diferentes maneiras e nos mais diversos espaços disponíveis, o futebol ou algo parecido com ele era a brincadeira predileta da infância de milhões de pessoas. O pensamento, segundo o qual, da quantidade se extrai qualidade pode ser utilizado, mas, na minha opinião, não basta. Para chegarmos ao nível de excelência que chegamos em relação ao futebol mundial, além de uma quantidade enorme de crianças e adolescentes brincando de futebol – e, consequentemente, aprendendo a modalidade – também existiam outros elementos que fizeram de nós, segundo alguns, o “país do futebol”.
Não é correto afirmar que apenas os brasileiros brincavam e brincam de futebol na infância. Em diversas observações, obras biográficas, entrevistas e pesquisas sobre a infância de atletas e ex-atletas ao redor do mundo, é possível encontrar evidências de brincadeiras similares ao futebol praticadas na rua, ou espaços equivalentes. Isso é uma prática quase que global.
Porém, por que os jogadores e jogadoras brasileiras, de maneira geral, possuem um jeito diferente de jogar futebol e de se relacionarem com a bola? Será que esse período da infância tem relação com isso? O que a pedagogia pode nos explicar?
Bastante! Um exemplo de como a pedagogia pode nos ajudar é por meio da compreensão do conceito de ambiente de aprendizagem. A partir dele podemos destacar alguns pontos que nos diferenciam e nos favorecem para a aprendizagem, particularmente, no nosso caso aqui, do futebol.
Sabemos que as técnicas corporais advêm da cultura lúdica, isto é, do conhecimento que determinada população possui de seus jogos tradicionais(*). No Brasil, temos o privilégio de termos influências culturais diversas que nos apresentam um repertório de expressão corporal rico, a partir de jogos e danças, especialmente indígenas, africanas e europeias. Essa riqueza cultural faz as crianças brasileiras se movimentarem de diferentes formas, criando diferentes técnicas corporais. Dentre elas estão as técnicas corporais relacionadas ao futebol: correr, gingar, equilibrar-se, saltar, relação com a bola etc.
Outro ponto que nos favorece é o nosso clima, que permite a prática de todas essas brincadeiras ao ar livre o ano todo. Se lembrarmos de Malcolm Gladwell e sua regra das 10.000 horas de prática deliberada para a excelência em determinada atividade, e percebermos como essas práticas lúdicas são capazes de criar conhecimentos e técnicas transferíveis para o futebol formal, percebemos que, enquanto país, temos um ambiente favorável para essa aprendizagem nesse quesito.
Para além de toda essa riqueza cultural de movimentos e a possibilidade de praticá-los o ano todo, temos algumas brincadeiras específicas, particularmente de bola com os pés, que estão bastante presentes na nossa cultura e nos fazem “treinar” gestos assemelhados aos praticados no jogo de futebol formal.
Essas brincadeiras giram em torno da mais tradicional delas, que é a pelada (também conhecida no Brasil afora como rachão, baba, contra, timinho etc.), proporcionando uma quantidade e qualidade de estímulos excepcionais para o desenvolvimento de conhecimentos específicos do futebol, mas não só. Entre as manifestações mais conhecidas dessa brincadeira está o jogo de futebol tradicional (11×11), além dele, em formatos reduzidos (3×3, 5×5, 8×8, golzinho etc.). Orbitando a pelada, encontramos jogos como o bobinho; a rebatida (ou repetida); o controle; 3 dentro, 3 fora; artilheiro; cruzamentos; driblinho; além dos jogos individuais com a bola nos pés.
Reúna todos esses elementos do ambiente de aprendizagem informal chamado Brasil, à prática de milhões de crianças e adolescentes – brincando de futebol – alguns deles por milhares de horas, e teremos uma combinação maravilhosa para o desenvolvimento de grandes talentos. Imagine cenários de “ruas” brasileiras de meados do Século XX, com a população urbana crescente, com a base da pirâmide etária populacional cheia de crianças e adolescentes indo brincar ao ar livre e encontrando no futebol uma forma de satisfazer suas vontades lúdicas. Dezenas dessas crianças, cada uma mais habilidosa que a outra, se encontrando e jogando futebol a tarde toda, até o anoitecer, quando tinham que voltar para a casa. Será que essa experiência não equivale ou mesmo supera os melhores treinos e aulas de futebol em escolas e clubes?
Esse ambiente de aprendizagem brasileiro está em risco. Se em algum dia perdermos essa característica cultural brasileira de sermos apaixonados pelo futebol e pelas brincadeiras ao ar livre, provavelmente nada restará que nos favoreça para a aprendizagem do futebol ou de qualquer outro esporte dessa natureza. Por exemplo, com o crescimento da cultura dos jogos virtuais, as crianças poderão perder grande parte da vontade e tempo de brincar de futebol e daqueles jogos que se assemelham a ele. Que técnicas corporais elas formarão nesse cenário?
Outra ameaça é a projeção de um menor número de crianças e adolescentes em termos proporcionais à população, segundo o IBGE(**). Uma menor quantidade geral de crianças, pode ser transferida para uma menor quantidade fractal, isto é, por grupo infantil, o que prejudica um dos fatores mais ricos para a aprendizagem de um jogo, que é a diversidade de obstáculos e desafios que os demais jogadores colocam para serem superados. Outro fator preocupante é a falta de segurança crescente que tende a impedir cada vez mais as crianças de brincarem em espaços públicos, ao ar livre.
Acredito que ainda não estamos totalmente tomados por essas ameaças. O Brasil, como ambiente de aprendizagem aplicada ao futebol, ainda pulsa. Podemos perceber atualmente muitas crianças e adolescentes apaixonados pelo jogo de futebol, fazendo dele a sua brincadeira predileta. Especialmente nas periferias dos grandes centros urbanos, nas cidades de interior ou no litoral, o futebol brasileiro raiz ainda sobrevive na cultura lúdica infantil. Do ponto de vista pedagógico não é supérfluo estudar este tema. Acredito que ele tenha sido um grande diferencial para que alguns jogadores brasileiros fossem admirados como gênios e artistas da bola e algumas de nossas equipes pudessem jogar um futebol arte e vencedor por décadas.
Portanto, continuo com a provocação de que estudar a forma como os brasileiros tradicionalmente aprenderam a jogar bola pode salvar o futuro do nosso futebol, mas não só! Pode salvar também a educação deste país! No próximo texto falaremos sobre como uma Pedagogia inspirada nesse ambiente de aprendizagem informal, que o Brasil criou aos montes, pode ensinar muito mais que futebol. Sabemos que ela não é só capaz de produzir grandes craques, pois, por mais admiráveis que sejam, eles não são suficientes para um país; ela pode e deve fazer muito pela educação integral das crianças, adolescentes e jovens brasileiros. E é disso que falaremos no texto da semana que vem.
Até lá!
(*) Veja mais em: Dos jogos tradicionais às técnicas corporais: um estudo a partir das relações entre jogo e cultura lúdica (SCAGLIA, FABIANI e GODOY, 2020). Clique para acessar.
(**) Veja mais em: Site do IBGE – Projeção populacional: diminuição da base da pirâmide etária. Clique para acessar.