Créditos imagens: Arquivos Fernando Corrêa
A equipe de futebol vista a partir de uma abordagem sistêmica pode ser considerada um conjunto de diversos componentes em interação, que atuam na formação de um sistema, no qual seus integrantes devem trabalhar de forma coordenada e interdependente para o melhor funcionamento e desenvolvimento da equipe.
A visão sistêmica tenta trazer para o jogo a compreensão do “todo”, permitindo uma análise global, mais completa e complexa da equipe. Nesta abordagem, todos os elementos que compõem a estrutura fazem parte de um sistema em constante organização, sejam eles elementos internos – como nível dos jogadores, visão da comissão técnica sobre o jogo e o treino, capacidade de operacionalização das ideias pela comissão técnica, modelo de jogo, qualidade do treino, aptidões psicoemocionais dos jogadores, funções táticas, ações técnicas e capacidades físicas desempenhadas pelos jogadores etc – ou externos – como estrutura do clube, aporte de investimentos, nível competitivo do clube, diretoria, torcida, imprensa, cultura do país etc.
Ao compreender a equipe como um sistema em constante organização, dinâmico e adaptativo, inicia-se a análise do conjunto de elementos e relações interdependentes existentes no ambiente de treino que, de alguma forma, influenciam no desenvolvimento e funcionamento da equipe.
Esta análise é fundamental para ter conhecimento sobre as dinâmicas existentes no sistema e, assim, obter as referências para a elaboração dos objetivos a serem alcançados durante o processo de desenvolvimento da equipe.
Com o entendimento do “todo” por meio da abordagem sistêmica, a comissão técnica deve ser capaz de elaborar sessões de treinamento condizentes com as ideias almejadas para o modelo de jogo, buscando sempre uma coerência entre o que se espera apresentar nos jogos e o que se faz nos treinamentos para que isso aconteça.
Neste contexto sistêmico do futebol, o goleiro, que tempos atrás tinha suas possibilidades de atuação no jogo subutilizadas, atualmente está cada vez mais inserido no modelo de jogo de forma sistematizada. Isso se deve à ampla possibilidade de atuação dos goleiros nos momentos de organização defensiva e ofensiva, transições e bolas paradas, realizando funções coletivas e individuais, tais como proteção da meta e do espaço aéreo; proteção da última linha defensiva; organização coletiva nas bolas paradas defensivas; orientações sobre as regras de ação dos companheiros nos diferentes momentos do jogo; e construção do momento ofensivo.
A maior utilização do goleiro no modelo de jogo, acompanhada da complexidade natural do jogo de futebol, exige que esse atleta desenvolva e aperfeiçoe constantemente seu repertório tático, técnico, físico e psicoemocional, buscando sempre reproduzir nos treinamentos as possíveis situações encontradas nos jogos. Mas para que se possa elaborar treinamentos que se aproximem ao máximo das situações de jogo e proporcionem uma eficaz atuação coletiva e individual dos goleiros, é fundamental entender as funções táticas, ações técnicas, capacidades físicas e aptidões psicoemocionais que o modelo de jogo demanda do goleiro, de acordo com as ideias de jogo da equipe e, também, de forma aleatória, devido à imprevisibilidade do jogo acompanhada das situações de oposição proporcionadas pela equipe adversária.
Segue abaixo uma tabela com os conteúdos táticos, técnicos, físicos e psicoemocionais desenvolvidos ao longo de uma temporada:
O modelo de jogo e o grau de inserção neste podem potencializar ou limitar o desenvolvimento dos goleiros. Isto porque, pensando em um amplo desenvolvimento do atleta, vivenciar apenas uma ideia de jogo dentro do modelo pode comprometer a sua constante evolução, se comparado a outro goleiro que vivenciar diferentes ideias de jogo, respeitando o tempo necessário para que as adaptações essenciais possam acontecer. Em relação à inserção no modelo de jogo, o goleiro sempre estará inserido, pois sua presença é fundamental para que o jogo aconteça. Mas o que determina suas possibilidades de atuação está diretamente relacionado ao grau de inserção no modelo, o qual pode proporcionar um repertório amplo ou limitado de funções táticas e ações técnicas a serem realizadas, que, por sua vez, influenciam diretamente as capacidades físicas e as aptidões psicoemocionais necessárias para a atuação nos jogos.
Ao analisar a atuação dos goleiros em equipes com modelo de jogo distintos, pode-se observar que, independente das ideias de jogo, os atletas realizam as “mesmas” funções táticas coletivas de organização ofensiva, defensiva, transições e bolas paradas, assim como as funções táticas individuais de proteção da meta, do espaço aéreo, da última linha e construção ofensiva. Mas as referências táticas coletivas e individuais necessárias para que os goleiros realizem estas “mesmas” funções são completamente diferentes por conta das particularidades de cada ideia de jogo.
Nesse contexto, as ideias de jogo contidas no modelo são extremamente importantes, pois estabelecem as orientações coletivas e individuais necessárias para que o goleiro confronte um ambiente caótico, proporcionando alguma previsibilidade na imprevisibilidade do jogo. E, juntamente com o grau de inserção, direcionam as características e a frequência com que cada função tática pode vir a ser realizada.
Vejamos as características das funções táticas na construção ofensiva e proteção da última linha em dois modelos com ideias de jogo distintas:
1) Imagine uma equipe A com modelo de jogo no qual o goleiro esteja inserido de forma integral no contexto coletivo e a equipe tenha como ideia de jogo:
- a) realizar um jogo posicional
- b) construção ofensiva desde o setor defensivo por meio de passes curtos (ataque-posicional);
- c) dominar as ações do adversário pela manutenção da posse de bola;
- d) marcação em bloco alto desde o tiro de meta adversário;
- e) forte ação de pressão na bola e no espaço nos momentos de pós-perda da posse.
O goleiro nestas circunstâncias, provavelmente irá realizar a função de construção ofensiva por meio dos seguintes comportamentos táticos:
- a) criar superioridade numérica nos momentos de construção ofensiva desde o setor defensivo;
- b) apoiar a organização ofensiva, oferecendo linhas de passe em largura e profundidade negativa para dar sequência ao jogo ou diminuir a pressão adversária no portador da bola;
- c) ampliar o espaço de jogo efetivo da equipe;
- d) garantir a manutenção da posse de bola;
- e) procurar opções seguras de passes curtos e médios quando responsável por retomar a posse de bola ou repô-la em jogo;
- f) criar desequilíbrio na organização defensiva adversária realizando passes entre linhas quando possível.
Para cumprir a função de proteção da última linha, o goleiro pode realizar os comportamentos táticos:
- a) diminuir o espaço das ações ofensivas adversárias em largura e profundidade por meio das orientações de subida do bloco;
- b) reequilibrar constantemente a organização defensiva em diferentes situações do jogo;
- c) orientações em relação aos gatilhos de pressão e controle da profundidade (bola coberta e descoberta);
- d) ações de cobertura fora da área;
- e) servir de novo obstáculo caso o adversário passe pela última linha defensiva (goleiro x 1);
- f) direcionar, retardar ou interromper a progressão das ações ofensivas adversárias;
- g) restringir as possibilidades de passes e lançamentos nas costas da defesa;
- h) orientar os jogadores a reduzir o espaço de jogo adversário utilizando a regra do impedimento.
2) Já em uma equipe B, com modelo de jogo no qual o goleiro também esteja inserido integralmente no contexto coletivo mas a equipe tenha como ideia de jogo:
- a) realizar um jogo reativo;
- b) construção ofensiva por meio de passes verticais (ataque-rápido ou contra-ataque);
- c) dominar as ações do adversário com rápidas transições ofensivas e defensivas;
- d) marcação em bloco baixo esperando o adversário para explorar os espaços nas costas da última linha;
- e) todos atrás da linha da bola nos momentos de pós-perda da posse.
O goleiro possivelmente irá realizar a função de construção ofensiva por meio dos comportamentos táticos:
- a) explorar os momentos de desequilíbrio na organização defensiva adversária realizando rápidas reposições, quando responsável por retomar a posse de bola ou repô-la em jogo;
- b) criar rupturas nas linhas defensivas adversárias por meio de passes verticais e lançamentos nas costas da defesa;
- c) facilitar o deslocamento da equipe ao campo de jogo adversário utilizando poucos passes;
- d) facilitar a construção ofensiva da equipe envolvendo poucos jogadores;
- e) apoiar a organização ofensiva oferecendo linha de passe para dar sequência ao jogo;
- f) direcionar a bola para um setor com menor pressão, preferencialmente no campo de defesa adversário.
E para cumprir a função de proteção da última linha, o goleiro pode vir a realizar os comportamentos táticos:
- a) garantir linhas defensivas seguras e equilibradas orientando os comportamentos táticos e técnicos dos demais jogadores;
- b) transmitir orientações ao jogador de contenção para que ele tenha a iniciativa de combater as ações ofensivas adversárias de acordo com o setor de pressão pré-definido;
- c) condicionar as ações ofensivas adversárias para zonas de menor risco no campo defensivo;
- d) ações de cobertura dentro da área;
- e) servir de novo obstáculo caso o adversário passe pela última linha defensiva (goleiro x 1);
- f) direcionar ou interromper a progressão das ações ofensivas adversárias;
- g) restringir as possibilidades de passes nas costas da defesa.
Veja, portanto, que as ideias de jogo influenciam diretamente nas características das funções táticas.
Ainda em relação as referências táticas, é essencial que o goleiro tenha uma ampla percepção dos possíveis comportamentos táticos adversários, pois o jogo de futebol é uma constante disputa entre as organizações ofensivas e defensivas, na qual cada equipe busca se sobrepor à outra na intenção de criar possibilidades para progredir em direção ao gol adversário. Isso faz com que o goleiro necessite direcionar sua atenção a todos as possíveis situações decorrentes desses confrontos, tendo como intenção antecipar as ações adversárias. O que o deixa constantemente em situações táticas complexas pela possibilidade de ter que atuar não apenas em uma função mas, sim, em duas ou mais simultaneamente durante grande parte do jogo.
Tomamos como exemplo um confronto entre as equipes A x B para analisar as possíveis demandas no que diz respeito às percepções táticas essenciais aos goleiros nos momentos em que necessitam realizar a função tática de proteção da última linha, de acordo com cada ideia de jogo.
Na equipe A, em que o goleiro realiza a função de proteção da última linha por meio de ações de cobertura fora da área, seu adversário (equipe B), por vezes, pode se encontrar longe do gol quando retomar a posse de bola. Estas situações acontecem pelas ideias de jogo adotadas pela equipe B e também por conta das ações de marcação em bloco alto e pressão pós-perda da bola realizados pela equipe A. Estar longe do gol nos momentos de retomada da posse de bola não oferece à equipe B grandes possibilidades de realizar chutes diretos ao gol ou cruzamentos na área, ficando limitada a passes em largura para retirar a bola da pressão, passes verticais buscando progredir para o campo adversário e lançamentos nas costas da defesa. Isso permite ao goleiro da equipe A focar a maior parte de sua atenção para realizar a função de proteção da última linha, tendo em vista as limitadas possibilidades de ações ofensivas adversárias.
Já a equipe B, na qual o goleiro realiza a função de proteção da última linha por meio de ações de cobertura dentro da área, o adversário (equipe A), por vezes, pode estar próximo ao gol quando retomar a posse de bola. Estas situações acontecem pelas ideias de jogo adotadas pela equipe A e as ações de marcação em bloco baixo, com todos atrás da linha da bola. A proximidade do gol adversário nos momentos de retomada da posse de bola proporciona à equipe A maiores possibilidades de ações ofensivas, como passes em largura para retirar a bola da pressão, passes verticais para infiltração na área, lançamentos nas costas da defesa, chutes direto ao gol e cruzamentos na área. Nesta situação, é essencial que o goleiro da equipe B amplie seu foco de atenção para identificar as possibilidades de ações ofensivas adversárias e tome a melhor decisão em relação à escolha da função tática a ser realizada – proteção da última linha, proteção da meta e proteção do espaço aéreo – e, consequentemente, o tipo de ação técnica necessária para realizar a função.
As ações técnicas – que são os fundamentos realizados pelos goleiros com o objetivo de cumprir suas funções táticas – também são diretamente influenciadas pelas ideias de jogo contidas no modelo. Essa influência se dá em relação aos tipos de fundamentos necessários para realizar uma determinada função e a frequência com que esses fundamentos podem ser solicitados.
Ao analisar o goleiro que atua na equipe A, provavelmente se observará que nos momentos de construção ofensiva, as ações técnicas de jogo com os pés apresentam uma predominância dos seguintes fundamentos:
- a) domínio orientado (tendo como referência a pressão adversária em espaço e tempo);
- b) condução de bola (nos momentos de circulação e homem livre);
- c) passes curtos e médios em largura e profundidade (realizados com a bola parada ou em movimento utilizando as mãos ou os pés).
Já em relação ao goleiro que atua na equipe B, os fundamentos predominantes podem ser:
- a) domínio com orientação vertical (tendo como referência o ajuste de corpo e da bola para realizar passes verticais);
- b) passes médios e longos em profundidade (realizados com a bola parada ou em movimento utilizando as mãos ou os pés);
- c) lançamentos nas costas da defesa (direcionados a um companheiro ou colocando a bola em disputa, realizados com a bola parada ou em movimento utilizando as mãos ou os pés).
Nos momentos de proteção da última linha, o goleiro da equipe A pode utilizar com maior frequência os fundamentos de cobertura defensiva fora da área com a predominância dos seguintes fundamentos:
- a) cabeceio orientado (buscando direcionar a bola para setores de menor risco);
- b) domínio orientado (peito e coxa);
- c) rebatidas de bate pronto (buscando direcionar a bola para os setores de menor risco);
- d) passes a um toque (realizados com a cabeça, peito, coxas e pés).
Em relação ao goleiro da equipe B, vamos observar uma maior frequência de ações de cobertura defensiva dentro da área, com a predominância dos fundamentos:
- a) pegada, encaixe, entrada e quedas laterais baixa e alta (nos momentos de interceptação das bolas);
- b) abordagens de GK x 1 (nos momentos de saída nos pés dos atacantes e enfrentamentos ao portador da bola).
Nesse contexto, segue abaixo uma visão geral das conexões entre o modelo de jogo, os momentos do jogo e as funções táticas coletivas/individuas desempenhadas pelos goleiros:
Abaixo as conexões entre os momentos do jogo, funções táticas coletivas/individuas e as ações técnicas desempenhadas pelos goleiros:
Outro ponto de grande influência, relacionado com o grau de inserção do goleiro no modelo de jogo, são as capacidades físicas e aptidões psicoemocionais. Isto porque o goleiro com maior grau de inserção no modelo provavelmente terá uma exigência física e psicoemocional maior em relação ao goleiro com grau de inserção parcial no contexto coletivo da equipe. Isso se deve à maior frequência de participação no jogo em diferentes momentos e não pelas ideias de jogo.
Seguem abaixo as conexões entre as funções táticas coletivas/individuas, ações técnicas e capacidades físicas exigidas dos goleiros:
Abaixo as conexões entre os momentos do jogo, funções táticas coletivas/individuas e as aptidões psicoemocionais exigidas dos goleiros:
O entendimento destas questões pode ajudar o treinador de goleiros na construção da semana de treinamentos. É fundamental que o treinador de goleiros elabore as sessões de treinamentos individuais dos goleiros de forma conjunta e coerente com o trabalho da equipe, pois todas as funções táticas e ações técnicas realizadas pelo goleiro exercem direta influência na organização coletiva da equipe. Em contrapartida, as ideias de jogo e o grau de inserção no modelo interferem diretamente nas funções táticas, ações técnicas, capacidades físicas e aptidões psicoemocionais necessárias aos goleiros. Se no momento da elaboração do treinamento individual não se levar em consideração todos os momentos do jogo, assim como as organizações e referências táticas coletivas, o treinamento acaba tendo finalidade nele mesmo e, consequentemente, a transferência para o jogo poderá ser prejudicada ou até mesmo não acontecer.
A compreensão das funções táticas desempenhadas pelo goleiro dentro do modelo de jogo e o entendimento da complexidade que existe na elaboração de uma sessão de treinamento nos permite conferir alguma previsibilidade a um jogo imprevisível, o que é muito importante, considerando que os esforços coletivos devem caminhar em uma mesma direção para se obter o melhor desempenho possível.