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Texto: Rafael Castellani e não reflete, necessariamente, a opinião da Universidade do Futebol.

Há pelo menos 20 anos estudo a psicologia do esporte e, desde o início, em sua relação com o futebol. Quanto ao futebol, questões de natureza psicológica e social, experimentadas enquanto praticante e, principalmente, nos anos como professor e pesquisador me levaram a querer melhor entendê-lo como prática psicossocial. Com qual objetivo? Compreendê-lo e transformá-lo! 

Desculpem-me o pessimismo, mas passadas essas duas décadas de estudo, muito pouco mudou. Ou melhor… mudou. Vem mudando. Mas não o suficiente para satisfazer minha sede por sua transformação. É uma mudança à passos de tartaruga que não dá conta de acompanhar o quanto a ciência já avançou e o quanto à frente o futebol brasileiro e a intervenção em psicologia do esporte poderiam estar.   

Neste período, sobretudo no papel de pesquisador, foram inúmeras situações observadas e analisadas. No entanto, uma delas me chama a atenção desde o início de minhas pesquisas: a falta de credibilidade e importância dada à psicologia do esporte por aqueles, uma grande maioria, que compõem o “campo futebolístico”. 

É praticamente consenso entre psicólogos do esporte que atuam no âmbito da pesquisa e/ou da intervenção, que estes profissionais são como “bombeiros”, solicitados somente para “apagar incêndios”.  Basta uma derrota impactante, a perda de um título, um “apagão na equipe”, uma “amarelada” de determinado jogador, que a psicologia volta à cena no debate esportivo-midiático.

Nos últimos anos, entretanto, a importância do preparo mental tem sido valorizada também em situações de sucesso. Ótimo! Já é um importante passo para sua transformação. Passamos a falar em psicologia do esporte não mais somente quando perdemos uma partida ou uma competição. Não só quando explicitamos nossas fraquezas e sofrimentos psíquicos e estas interferem no rendimento esportivo, mas também quando vencemos por demonstrar preparo, força e equilíbrio mental, dentre outras habilidades neste contexto. Entretanto, mesmo nestes casos, raramente essa virtude é atribuída à presença ou ao trabalho eficaz de um(uma) psicólogo(a) do esporte. Pelo contrário, costumamos ouvir que “fulano é forte mentalmente”. “Ciclano é muito seguro”. “Beltrano é de grupo”. “Esse grupo é uma família”. ‘Tal jogador é inabalável. Não sente a pressão”. Como se essas habilidades fossem inatas aos seres humanos ou não dependessem da relação desses sujeitos com o meio que vivem.       

Importa ressaltar que, de alguns anos para cá, o/a profissional especialista em psicologia esportiva tem ganhado mais destaque e espaço na mídia. A grande questão é que ainda a força do discurso é mais potente que a força da ação. Até quando? 

Impossível não lembrar do fatídico 7X1 contra a Alemanha na Copa do Mundo masculina de futebol de 2014. Àquela época, tive a oportunidade de publicar um artigo no Centro Esportivo Virtual, cujo título foi “Um dia lições para o futebol brasileiro”, no qual apresento aquela dolorosa derrota como uma oportunidade de tirarmos dela algumas lições. Quando erramos ou fazemos algo que não deveríamos ter feito, costumam nos dizer: “que sirva de lição”, não é? 

Oito anos se passaram desde essa eliminação e de muitas outras situações de derrota, “inesperadas” ou não, mas é de praxe treinadores, dirigentes e comentaristas esportivos justificarem as derrotas ao despreparo mental ou, em outras palavras, ao descontrole emocional. Tal jogador “errou muitos gols, pois estava muito ansioso”. “O time abusou das faltas, pois estava muito nervoso”. “Temos um ótimo elenco, mas o treinador perdeu o vestiário”. “O time é bom, mas falta uma liderança”. “Está faltando tranquilidade na hora de finalizar”. “Fulano é bom, mas falta confiança”. “Temos muitos jogadores bons, mas o grupo não é unido”. Enfim, quantas frases além destas não ouvimos cotidianamente? Recentemente, após uma derrota de virada (em 13 minutos levou 3 gols), o treinador de um grande clube brasileiro disse: 

“Eu acho que temos que ser mais fortes psicologicamente. Quando sofre um gol, tem que estar mais ligado no jogo. Não deixar se abater, ter mais força psicológica, mental, para continuar jogo.”

Parece-nos um discurso consciente e coerente, não é? Mas até quando ficará só no discurso? De que forma ele pretende fortalecer mentalmente seus atletas para enfrentarem as adversidades do jogo e da profissão? Qual espaço e importância ele, treinador e principal liderança da equipe, dá à psicóloga esportiva que compõe a comissão técnica? Será que as lições das derrotas, e também das vitórias, nos ensinaram algo? Aparentemente, não. Ou muito pouco. 

Uma prova explícita de que não estamos aprendendo com as derrotas, fracassos e erros de planejamento é que, novamente, a seleção brasileira masculina de futebol iniciou uma Copa do Mundo sem ter realizado um trabalho consistente com uma equipe de especialistas em psicologia do esporte. 

Em reportagem de Bruno Cassucci e Rafael Zarko para o Globo Esporte.com do dia 15 de novembro de 2022, o treinador da seleção brasileira não só confirma que propositalmente não contará com profissionais da psicologia do esporte em sua comissão, como explicita, ao tentar justificar os motivos de sua decisão, um enorme desconhecimento sobre os pressupostos, objetivos e benefícios que sua equipe, seus atletas e demais integrantes da sua comissão técnica poderiam ter, caso um bom trabalho de psicologia esportiva tivesse sido realizado. 

Inúmeros clubes investem milhões em estrutura física, tecnologia, marketing, atletas de elite e uma ampla e diversa comissão técnica, mas permanecem sem reconhecer a importância da psicologia do esporte e, mais do que isso, investir de fato nessa área de atuação profissional. Nossa seleção brasileira levou ao Catar uma comissão técnica capaz de intervir com qualidade no âmbito técnico, tático, físico, e… administrativo. Ficou de fora o aspecto emocional, explicitando que o futebol brasileiro, representado pela sua entidade maior em nível nacional e a sua seleção, permanece desconhecendo ou subestimando a importância da psicologia do esporte no âmbito do futebol profissional. Até quando?

Essa pergunta, dita repetidamente neste texto, do título até aqui, não é fácil de ser respondida. Mas há alguns pontos que podemos levantar para reflexão. Há muitos anos não sofríamos uma descrença tão grande pela ciência. O negacionismo sempre forte no futebol, impregnado pelo empirismo, agora atinge com força também a área da saúde pública. Tomar vacina nos fará “virar jacaré”.  Recomendou-se à população, que morria aos milhares, remédios sem eficácia comprovada. Os cortes nas verbas para desenvolvimento da ciência e tecnologia são enormes. As verbas para as Universidades Públicas, maiores responsáveis pela produção científica, foram cortadas. 

Se o negacionismo e desvalorização do conhecimento científico atingiu com forças até a ciência biomédica, imaginem as ciências humanas e sociais. No âmbito do futebol, instituição marcada por seu conservadorismo, se já não é fácil implementar um bom trabalho na área do treinamento desportivo, biomecânica, fisiologia, neurologia, análise de desempenho, dentre outras, imaginem intervenções em psicologia do esporte. E poderíamos ir além: imaginem intervenções em psicologia do esporte a partir de abordagens menos habituais do que a cognitiva-comportamental, que ainda predomina neste contexto. 

Por fim, o outro ponto que gostaria de trazer para reflexão, apesar de também me acompanhar durante essas últimas duas décadas, ainda é bastante atual e polêmico. Sei disso e espero, com esse texto, retomar esse debate. Em partes, esse espaço (físico, inclusive) que a psicologia do esporte ocupa nos clubes profissionais de futebol e a importância que lhe é atribuída, se deve também ao modo como os próprios psicólogos esportivos se colocam nesse mercado de trabalho e realizam suas intervenções. 

Via de regra, continuamos, mesmo após tantos anos, confundindo a psicologia clínica com a psicologia esportiva. O discurso do Tite na reportagem supracitada, bem como o próprio direcionamento dado pelos jornalistas à questão da busca de atletas por procedimentos psicoterapêuticos, também explicitam tal equívoco. Se o procedimento clínico pressupõe uma forma de observar e acolher determinado fenômeno psíquico individual, a intervenção em psicologia esportiva, no âmbito do futebol profissional, tem o foco na equipe, no grupo, pensando na sua operatividade e rendimento esportivo. Ainda assim, vale destacar que a psicologia possui inúmeras formas de olhar, compreender e intervir sobre um mesmo fenômeno e nem toda intervenção em psicologia é clínica. É preciso destacar também, e corroborando Rubio (2007, p.3), que “nem toda a psicologia aplicada ao esporte é psicologia do esporte”. 

É certo afirmar que grande parte dos modelos que fundamentam uma intervenção psicológica advém da psicoterapia, sobretudo da psicologia clínica, mas nem todo campo de intervenção em psicologia, como é o caso da psicologia esportiva, é clínico, pois há teorias e métodos científicos específicos. O que defendo é que no âmbito do futebol profissional esse procedimento não seja pautado “em um setting que tem o atendimento dual do consultório como referência” (RUBIO, 2007, p.3). A psicologia do esporte e a psicoterapia clínica são complementares e não excludentes, mas, ainda assim, são papéis a serem desempenhados por profissionais diferentes.     

Enquanto psicólogos do esporte continuarem sentados na “salinha” de um clube esperando um jogador “marcar uma consulta” ou vir procurá-los para abordar problemas pessoais, situações de sofrimento psíquico, depressão, alcoolismo etc, estabelecendo uma mera transposição de teorias e técnicas psicológicas clínicas a um específico campo de atuação profissional (o futebol, por exemplo), provavelmente a psicologia do esporte continuará não assumindo o espaço, importância e reconhecimento que lhe cabe.  

Significa que essas questões pessoais não são importantes? São muito importantes! E isso só nos mostra ainda mais que jogadores de futebol são seres… humanos! Não são máquinas que devem render a qualquer custo. Não são peças para serem repostas. Não são mercadorias para serem vendidas. Não são produtos que podem ser descartados. São sujeitos históricos, dotados de sentimentos, necessidades, subjetividade. São seres humanos que, como qualquer outro, também sofre psiquicamente. 

São profissionais. E como qualquer outro profissional (dentista, professor, advogada, engenheiro, médica, faxineira, dentre outros), deve ser acolhido, ouvido e respeitado. Como qualquer outra pessoa, deve exercer o direito e ser incentivada a passar por um acolhimento psicoterapêutico. Mas, o que defendo é que esse ser humano (antes de ser atleta, ele é sujeito) deve ser encaminhado para outro profissional, tal como sugere o próprio comitê de ética dos psicólogos. E nesse sentido, a presença do psicólogo esportivo nos clubes também é fundamental, pois, no ambiente do clube, ele é o profissional mais capacitado para identificar essa necessidade, fazer esse acolhimento inicial e, se preciso, encaminhar o jogador para um acompanhamento clínico psicoterapêutico.  

Compreendo também que esse “espaço clínico” que psicólogos esportivos ocupam nos clubes profissionais de futebol nem sempre é intencional. Afinal, é como “o futebol” os vê. É como se abrem as portas. É o famoso “é o que tem pra hoje”. Em um contexto no qual “até ontem” as portas sequer se abriam, entrar e ocupar uma “salinha” já pode ser visto como uma grande conquista. 

Mesmo diante deste contexto, no entanto, defendo a tese de que, o quanto antes, psicólogos do esporte devem, de fato, fazer parte da comissão técnica. Da mesma forma que há no clube de futebol um planejamento técnico, físico e tático, deve haver também um psicológico. Precisamos falar com mais seriedade e profundidade de uma periodização psicológica. Sessões de treinos com psicólogos ou psicólogas. No campo. No vestiário. Nas concentrações esportivas. Nas viagens. Precisamos lidar, preferencialmente por meio de jogos e dinâmicas, com o manejo das emoções e técnicas de operação de grupo.  

Quantos clubes de futebol estão preparados para lidar com a reabilitação psicológica de atletas lesionados? Será que os clubes estão preparados para intervir psicologicamente de modo a qualificar positivamente a performance esportiva do atleta e, consequentemente, da equipe? Por exemplo, em estudo recente, Costa, Cardoso e Machado (2022) afirmam que o elevado número de tomada de decisões que um jogador tem que realizar numa partida de futebol, em circunstâncias de pressão de tempo e espaço, pode influenciar negativamente a performance do jogador. Os clubes estão atentos a isso? 

As possibilidades de intervenção e contribuição da psicologia esportiva são inúmeras! Mas, provavelmente, o maior potencial de contribuição da psicologia ao futebol se dá no campo das relações. É importante que nossos atletas saibam lidar com o medo, ansiedade, estresse, autoconfiança, autoeficácia, resiliência, agressividade, concentração/atenção, motivação e que saibam tomar decisões corretas no jogo? Sim! Sem dúvidas! É válido que reconheçamos os perfis psicológicos dos jogadores? Sim! Sem dúvidas. Mas é fundamental também que saibam operar em grupo, que se comuniquem bem, que compreendam o interjogo de atribuição e assunção de papéis dentro da equipe (principalmente o de reserva e titular ou, inconscientemente, o de emergente, sabotador e/ou bode expiatório), que tenham um “vestiário” descontraído, harmonioso e de confiança, que desenvolvam sua liderança, que delimitem seus objetivos coerentemente, que planejem suas carreiras, que equilibrem suas expectativas de êxito e de fracasso. E isso, com todo respeito àqueles que pensam diferente, não se faz numa sala sentado numa cadeira de frente para o jogador que lhe procura.

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